segunda-feira, 30 de maio de 2011

Filosofia, mitologia e cinema: David Hume, Hesíodo e o ladrão de raios




Uma edição de alguns trechos do filme O Ladrão de Raios, em torno de 3 minutos, 
pouco em relação ao longa metragem, porém ilustrativo no que compõe
 o interesse em uma redação de um breve artigo articulando noções do filósofo David Hume 
em relação à imaginação, e a obra de Hesíodo: Teogonia: A origem dos deuses. Confira:



Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,
(...) e Eros: o mais belo entre Deuses imortais,
solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade”
Hesíodo


O que a metafísica de David 
Hume tem a ver com esta história toda?

“todo poder criador do espírito não ultrapassa
 a faculdade de combinar, de transpor, aumentar ou de diminuir
os materiais que nos foram fornecidos
 pelos sentidos e pela experiência.” 
David Hume


À primeira vista, lançar em um mesmo plano referências tão distantes no  tempo, pode nos parecer estranho, porém, verificaremos através de um exame mais detalhado, o quanto a filosofia moderna, mais especificamente os trabalhos de David Hume, podem nos oferecer uma base filosófica precisa para interpretar o imaginário expresso nos personagens da mitologia grega, que por sua vez aparecem em sua versão pop no filme “Percy Jackson e o Ladrão de Raios” (EUA, 2010), que se trata de uma adaptação para o cinema do livro inicial da série “Percy Jackson e os Olimpianos”, do escritor americano Rick Riordan, este foi o "insight" inicial para o relampejo desse breve e curioso artigo. Deste modo, começaremos por traçar melhor a posição da metafísica de David Hume nesta história toda. Para o filósofo, a partir de passagens encontradas em seu célebre livro “Investigações sobre o entendimento humano”, mais precisamente nas seções II e II, intituladas “Da origem das ideias” e “Da associação da ideias”, constatamos uma teoria das ideias que se funda primordialmente com base na experiência.

Experiência, na linguagem de David Hume, significa o conjunto de dados informações que obtemos através dos sentidos, isto é, significa tudo aquilo que nos afeta de modo imediato, seja no campo da percepção de objetos externos, seja no campo da erupção dos afetos, sentimentos internos, pelos quais somos tomados de acordo com as circunstâncias. Sobretudo, na linguagem de David Hume, o conceito que corresponde ao termo experiência, ganha o nome de “impressões”, que são as nossas percepções mais vivas.

O lugar das “impressões” contudo, se encontra em contraste com a outra categoria de percepções mais fracas, que se denominam “pensamentos ou ideias”, que por sua vez se remetem à reflexão e à lembrança, em que as percepções originais apreendidas pelos sentidos são mais vagas em detalhes, pois na reflexão e na lembrança de uma sensação ocorrida a determinação e definição escapa à totalidade do acontecimento original.
Contudo, as impressões acontecem justo no momento quando observamos, sentimos, ouvimos, isto é, quando os detalhes dos acontecimentos presentes estão mais vivos, mais recheados de detalhes. Já na reflexão e na lembrança as qualidades dos objetos e o fervor dos sentimentos está amansado, apaziguado, pois a reflexão e a lembrança não retomam a impressão original.

Deste modo, para o filósofo existirá então uma relação de interdependência entre ideias e impressões. Em sua concepção, em nossas percepções primordiais abrigam-se a gênese e origem de todas as nossas ideias. Isto é, entre impressões e ideias uma relação de causa e efeito as aproxima de modo umbilical. Assim, uma idéia tem como sua causa, digamos assim, uma dada impressão, ou em outros termos, uma determinada ideia tem como sua causa um certo conjunto de impressões fornecidos pela experiência. E de modo inverso, uma dada impressão produz como seu efeito uma determinada ideia.

Assim também funcionará o mecanismo que rege nossa imaginação. Conceito que mais nos interessa na presente investigação. Se estamos acostumados a ouvir que a imaginação é livre, para David Hume, ela está precisamente contornada em uma certa demarcação dos limites de nossa experiência, ou seja, nos limites das impressões às quais tivemos acesso. Deste modo, poderíamos afirmar que nossas impressões seriam como as portas de nossas ideias. Pois é justo através das impressões dadas pela experiência que nossas ideias tomam forma.
No caso da imaginação, David Hume encontrará um conceito preciso para explicá-la. Para delimitar melhor como a nossa imaginação se forma, nasce na filosofia de David Hume o conceito fundado no princípio da associação de ideias. Com este conceito, abre-se então a possibilidade de localizarmos melhor a origem daquilo que nos sobrevém à mente quando o assunto é imaginação.

Ao invés de nos assustarmos ou nos espantarmos com figuras e formas estranhas à natureza e à realidade, como no caso de pesadelos, sonhos, filmes de terror ou ficção científica, desenhos animados, revistas em quadrinhos, etc.  Para o filósofo David Hume, todos os dados da experiência, isto é, nossas impressões, quando retomados em nossa memória ou imaginação, são ora aumentados, diminuídos, combinados e sobretudo associados, seja de modo eventual, seja de modo imposto pela vontade e pela criatividade. Deste modo, o princípio da associação de ideias é responsável por ligar, na imaginação, dados, figuras, qualidades, características e informações de objetos e formas diferentes, que no plano da natureza e da realidade seriam impossíveis.


Teogonia, a origem dos deuses de Hesíodo
e as interpretações metafísicas 
de Hume acerca da imaginação

Ora, modernamente é que se tematizou a partir de outra abordagem, perspectiva, uma interpretação empirista da formação das ideias e nestas a imaginação como nos propõe David Hume. 

Isto no levou a pensar que poderíamos por mediação da associação da noção de imaginação com a noção de mitologia, isto é, categorias diferentes em relação à natureza e à realidade, tomá-las, elas, a imaginação na perspectiva da metafísica de David Hume, e os traços presentes na Teogonia de Hesíodo, como algo que pudéssemos explorar traços em comum entre estas duas referências.

Nossa primeira constatação é a de que a mitologia carrega em seu modo de associação das ideias traços de nossas impressões reais. E neste sentido, ao criar figuras, que habitam o desconhecido plano da religiosidade de um povo, que é a sua formação no tecer do tempo, das formas de linguagem inscritas sob a égide de um lampejo religioso, o conjunto de sua mitologia e de seu imaginário. Mitologia esta que em dado momento histórico orientam as ações e decisões daqueles a quem a crença está inscrita na alma, que em filosofia, está sempre associada ao plano das ideias, desde a antiguidade em Platão com o mundo das ideias inscritas no mundo das almas, aonde reside o conceito de verdade, até a modernidade, com filósofos como René Descartes, também associando o plano das ideias como algo distinto do corpo, que porém se relacionam entre si, mas são precisamente de natureza distintas.

É sabido, que a Teogonia do poeta Hesíodo ocupa o lugar mais longínquo, e por isso não menos importante, do que nós modernos conhecemos dos antigos gregos, que se referia à sua mitologia, as figuras do imaginário de linguagem e imagem tão diversificado como a mitologia grega o fez. E que para a modernidade, nos chega através de seus ecos e releituras dos mitos gregos, que para a grande massa é oferecido principalmente por meio das séries de desenhos televisivos e também  por meio do cinema, em diversos filmes recentes da última década, entre eles o filme em que o nosso ladrão de raios aparece.

Retomando algumas lembranças dos mitos gregos, poderíamos afirmar que, as figuras reunindo características animais e humanas, como o minotauro, ou aumentadas, segundo a perspectiva de Hume, ou as musas como profetas da criação, poderiam ser indicações de que um contorno filosófico tentasse se aproximar de uma mais precisa abordagem das figuras da Teogonia, dissecando associações de ideias abrigadas nas figuras do imaginário da mitologia grega, descrita na obra do poeta Hesíodo.  Compreendemos isto como um valioso caminho de averiguação das teses de David Hume a respeito da imaginação.

Nossa intenção, sobretudo, é se colocar no limite temporal que nos interpõe e nos afasta, desde uma mediação entre nós e os mitos da antiguidade que antecederam o surgimento da filosofia. Não pretendemos aqui realizar um trabalho de interpretação filosófica da obra Teogonia como um todo, desde a perspectiva da poética do mito, tema o qual se ocupam alguns filósofos atualmente. Mas de outra maneira e em outra direção, tratar o tema da imaginação associado ao tema da mitologia, desde uma perspectiva empirista e não desde uma metafísica do mito. Isto é, a partir da tendência e inclinação em se familiarizar mais com algumas noções de metafísica, desde a observação dos mitos. 

Nesta mesma direção, afirmamos que a metafísica empirista de Hume nos promove uma referência em relação ao assunto, porém, sabemos, que se trata de um caminho, e tão somente um caminho, dentre outros possíveis de leitura, em que uma investigação mais rigorosa das figuras da Teogonia desde uma interpretação da poética ali instaurada, não é a intenção deste trabalho. A parcela do desconhecido, indizível, irracional e do psiquismo, simbologia e religiosidade, se interpõe entre nós e a Teogonia de Hesíodo, nos é inacessível, de certeza que é um livro de muito difícil leitura, e de uma riqueza poética incomensurável.

A título de referência mais precisa na Teogonia de Hesíodo, uma passagem nos chama muito a atenção. Se trata do "Proêmio das Musas", que promovem com seu canto o anúncio das divindades e dos elementos da natureza sob a égide destes deuses e deusas. Figuras como Zeus, Hera, Argos, Apolo, Atena, Ártemis, Posídon, Têmis, Afrodite, Dione, Aurora, grande Sol, Lua brilhante, Jápeto, Terra, Oceano e Noite, ecoam nos cantos das musas que lançam "belíssima voz". Figuras estas que são associadas a impressões de objetos materiais: como calçada, sandálias, porta, flechas, coroa, traços do corpo como olhos, qualidades como o "curvo pensar" de Jápeto, e ideias, como a ideia de beleza, de agilidade, de soberania, áurea, sagrado, imortalidade, luminosidade, entre outros. Vejamos como se articula a passagem em que encontramos estas figuras citadas acima, a saber, "O Proêmio das Musas": 

“vão em renques
noturnos lançando belíssima voz,
hineando Zeus porta-égide, a soberana Hera
de Argos calçada de áureas sandálias,
Atena de olhos glaucos virgem de Zeus porta-égide,
o luminoso Apolo, Ártemis verte-flechas,
Posídon que sustém e treme a terra,
Têmis veneranda, Afrodite de olhos ágeis,
Hebe de áurea coroa, a bela Dione,
Aurora, o grande Sol, a Lua brilhante,
Leto, Jápeto, de curvo pensar,
Terra, o grande Oceano, a Noite negra
e o sagrado ser dos outros imortais sempre vivos.”

O que pretendemos indicar lendo esta passagem, a partir da teoria da imaginação de David Hume, trata-se em compreender que encontramos na filosofia referências interessantes em nos aproximar de uma possibilidade de leitura e compreensão das figuras mitológicas da Teogonia de Hesíodo.  Sendo a obra de Hesíodo a principal referência para mais uma versão sobre  mitologia grega sendo dessa vez uma releitura cinematográfica a partir de um curioso filme que traz à tona uma leitura da literatura juvenil de um americano chamado Rick Riordan. Comentário que gostaríamos de ilustrar a partir da referência ao filme em questão.

E em outra direção, nos interessa observar, ao nosso modo, como o cinema através de uma grande produção, que envolve nada mais que o diretor Chris Columbus (que dirigiu os dois primeiros Harry Porter), ainda nos dias de hoje, sob o domínio da técnica e da ciência no mundo moderno, consegue atrair temas da antiguidade ocidental como tais como os mitos gregos, como tema para um empreendimento bem sucedido da indústria cinematográfica como este. Chris Columbus retoma a mitologia grega, a subvertendo e pegando carona em suas figuras, e por tabela nos remonta a trechos da obra que mais chegou aos leitores de nossas gerações atuais sobre a mitologia grega, que é  célebre “Teogonia: a origem dos deuses” do poeta Hesíodo. No princípio era o caos.


 A Zeus deram o trovão e forjaram o raio: e nos aparece no cinema nosso caro amigo Ladrão de raios: o principal acusado é Percy Jackson


O raio governa todas as coisas que são
Herácrito

Ora, logo o relâmpago, o trovão de Zeus? Estaria a hierarquia do arquétipo de rei dos reis do Universo, o grande Zeus em perigo? Tendo seu principal poder ameaçado? Seu atributo da natureza que ele Zeus coordena? O que a trama do filme anuncia logo ao início é a instabilidade do Olimpo. Poseidon, ligado ao elemento da phisys que é o mar, e Zeus, ao governo do “Relâmpago”, em uma dilema: localizar o raio que foi roubado: o raio de Zeus.
O percurso desta trama e aventura, se passa na busca por este raio principal, já dizia o filósofo Heáclito: “O raio governa todas as coisas que são”. O interessante que a grande maioria dos personagens impõe sua forma peculiar, em um cenário místico próprio da obra de Hesíodo, dando espetacular relevo aos mitos gregos, como por exemplo, as cenas em que aparecem as  figuras ou imagens da Hidra, e do olhar  mortal e petrificador da sensual Medusa.






Levando adiante as Teses de Hume: 
a Teogonia de Hesíodo, 
e sua releitura no filme do diretor Chris Columbus

Ora, retomemos o percurso: em uma primeira oportunidade nos deparamos com a filosofia de David Hume, e uma tentativa de demonstrar através de análise de exemplos, que o filme Percy Jackson e o Ladrão de raios, baseado no livro de Rick Riordan, e a obra clássica Teogonia a origem dos deuses de Hesíodo, principal referência para as figuras do imaginário da mitologia grega, apresentam, contudo, um fio condutor entre eles. Isto nos daria abertura para um diálogo entre metafísica, a partir do tema da imaginação, e as figuras  da imaginação apresentadas nos mitos e reelaboradas no filme o Ladrão de Raios, de 2010.

Nossa inclinação é indicar que as afirmações de David Hume de que as figuras da imaginação associam de uma forma ou de outra elementos, características, da experiência sensível, é um de nossos principais pontos de partida para a abordagem aqui desenvolvida. Podendo, a atividade da imaginação, aumentar, associar, diminuir, caricaturar, como própria dinâmica do pensamento, os dados fornecidos pelos sentidos. Tomando sobretudo como referências os elementos ou fenômenos da natureza tornadas divindades na obra de Hesíodo, e que o filme em questão dá relevo e importância, por exemplo nas figuras de Poseidon, referente aos mares, e Zeus, referente ao raios.

É nesta direção que vale a pena articular algumas noções acerca do tema da imaginação na filosofia de David Hume, para a qual a principal constatação em relação ao conhecimento é exatamente a pergunta:  “What impression that Idea is derived?” Isto é, de que impressão esta idea é derivada? Assim encontramos no Tratado da Natureza Human de Hume. É este o problema filosófico primordial que nos conduziu por todo este percusso de reflexão.


















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