Uma edição de alguns trechos do filme O Ladrão de Raios, em torno de 3 minutos,
pouco em relação ao longa metragem, porém ilustrativo no que compõe
o interesse em uma redação de um breve artigo articulando noções do filósofo David Hume
em relação à imaginação, e a obra de Hesíodo: Teogonia: A origem dos deuses. Confira:
“Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,
(...) e Eros: o mais belo entre Deuses imortais,
solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade”
Hesíodo
Hesíodo
O que a metafísica de
David
Hume tem a ver com
esta história toda?
“todo poder criador do espírito não ultrapassa
a faculdade de combinar,
de transpor, aumentar ou de diminuir
os materiais que nos foram fornecidos
pelos sentidos e pela experiência.”
David Hume
À
primeira vista, lançar em um mesmo plano referências tão distantes no tempo,
pode nos parecer estranho, porém, verificaremos através de um exame mais
detalhado, o quanto a filosofia moderna, mais especificamente os trabalhos de
David Hume, podem nos oferecer uma base filosófica precisa
para interpretar o imaginário expresso nos personagens da mitologia grega,
que por sua vez aparecem em sua versão pop no filme “Percy Jackson e o Ladrão
de Raios” (EUA, 2010), que se trata de uma adaptação para o cinema do livro
inicial da série “Percy Jackson e os Olimpianos”, do escritor americano Rick
Riordan, este foi o "insight" inicial para o relampejo desse breve e
curioso artigo. Deste modo, começaremos por traçar melhor a posição
da metafísica de David Hume nesta história toda. Para o filósofo, a partir
de passagens encontradas em seu célebre livro “Investigações sobre o
entendimento humano”, mais precisamente nas seções II e II, intituladas “Da
origem das ideias” e “Da associação da ideias”, constatamos uma teoria das
ideias que se funda primordialmente com base na experiência.
Experiência,
na linguagem de David Hume, significa o conjunto de dados informações que
obtemos através dos sentidos, isto é, significa tudo aquilo que nos afeta de
modo imediato, seja no campo da percepção de objetos externos, seja no campo da
erupção dos afetos, sentimentos internos, pelos quais somos tomados de acordo
com as circunstâncias. Sobretudo, na linguagem de David Hume, o conceito que
corresponde ao termo experiência, ganha o nome de “impressões”, que são as
nossas percepções mais vivas.
O
lugar das “impressões” contudo, se encontra em contraste com a outra categoria
de percepções mais fracas, que se denominam “pensamentos ou ideias”, que por
sua vez se remetem à reflexão e à lembrança, em que as percepções originais
apreendidas pelos sentidos são mais vagas em detalhes, pois na reflexão e na
lembrança de uma sensação ocorrida a determinação e definição escapa à
totalidade do acontecimento original.
Contudo,
as impressões acontecem justo no momento quando observamos, sentimos, ouvimos,
isto é, quando os detalhes dos acontecimentos presentes estão mais vivos, mais
recheados de detalhes. Já na reflexão e na lembrança as qualidades dos
objetos e o fervor dos sentimentos está amansado, apaziguado, pois a reflexão e
a lembrança não retomam a impressão original.
Deste
modo, para o filósofo existirá então uma relação de interdependência entre
ideias e impressões. Em sua concepção, em nossas percepções primordiais
abrigam-se a gênese e origem de todas as nossas ideias. Isto é, entre
impressões e ideias uma relação de causa e efeito as aproxima de modo
umbilical. Assim, uma idéia tem como sua causa, digamos assim, uma dada
impressão, ou em outros termos, uma determinada ideia tem como sua causa um
certo conjunto de impressões fornecidos pela experiência. E de modo inverso,
uma dada impressão produz como seu efeito uma determinada ideia.
Assim
também funcionará o mecanismo que rege nossa imaginação. Conceito que mais nos
interessa na presente investigação. Se estamos acostumados a ouvir que a
imaginação é livre, para David Hume, ela está precisamente contornada em uma
certa demarcação dos limites de nossa experiência, ou seja, nos limites das
impressões às quais tivemos acesso. Deste modo, poderíamos afirmar que nossas
impressões seriam como as portas de nossas ideias. Pois é justo através das
impressões dadas pela experiência que nossas ideias tomam forma.
No
caso da imaginação, David Hume encontrará um conceito preciso para explicá-la.
Para delimitar melhor como a nossa imaginação se forma, nasce na filosofia de
David Hume o conceito fundado no princípio da associação de ideias. Com este
conceito, abre-se então a possibilidade de localizarmos melhor a origem daquilo
que nos sobrevém à mente quando o assunto é imaginação.
Ao
invés de nos assustarmos ou nos espantarmos com figuras e formas estranhas à
natureza e à realidade, como no caso de pesadelos, sonhos, filmes de terror ou
ficção científica, desenhos animados, revistas em quadrinhos, etc. Para o
filósofo David Hume, todos os dados da experiência, isto é, nossas impressões,
quando retomados em nossa memória ou imaginação, são ora aumentados,
diminuídos, combinados e sobretudo associados, seja de modo eventual, seja de
modo imposto pela vontade e pela criatividade. Deste modo, o princípio da
associação de ideias é responsável por ligar, na imaginação, dados, figuras,
qualidades, características e informações de objetos e formas diferentes, que
no plano da natureza e da realidade seriam impossíveis.
Teogonia, a origem dos
deuses de Hesíodo
e as interpretações
metafísicas
de Hume acerca da
imaginação
Ora,
modernamente é que se tematizou a partir de outra abordagem, perspectiva, uma
interpretação empirista da formação das ideias e nestas a imaginação como nos
propõe David Hume.
Isto
no levou a pensar que poderíamos por mediação da associação da noção de
imaginação com a noção de mitologia, isto é, categorias diferentes em relação à
natureza e à realidade, tomá-las, elas, a imaginação na perspectiva da
metafísica de David Hume, e os traços presentes na Teogonia de Hesíodo, como
algo que pudéssemos explorar traços em comum entre estas duas referências.
Nossa
primeira constatação é a de que a mitologia carrega em seu modo de associação
das ideias traços de nossas impressões reais. E neste sentido, ao criar
figuras, que habitam o desconhecido plano da religiosidade de um povo, que é a
sua formação no tecer do tempo, das formas de linguagem inscritas sob a égide
de um lampejo religioso, o conjunto de sua mitologia e de seu imaginário. Mitologia esta que em dado momento histórico orientam as ações e decisões
daqueles a quem a crença está inscrita na alma, que em filosofia, está sempre
associada ao plano das ideias, desde a antiguidade em Platão com o mundo das
ideias inscritas no mundo das almas, aonde reside o conceito de verdade, até a
modernidade, com filósofos como René Descartes, também associando o plano das
ideias como algo distinto do corpo, que porém se relacionam entre si, mas são precisamente de natureza distintas.
É
sabido, que a Teogonia do poeta Hesíodo ocupa o lugar
mais longínquo, e por isso não menos importante, do que nós modernos
conhecemos dos antigos gregos, que se referia à sua mitologia, as figuras do
imaginário de linguagem e imagem tão diversificado como a mitologia grega o fez. E que
para a modernidade, nos chega através de seus ecos e releituras dos mitos
gregos, que para a grande massa é oferecido principalmente por meio das séries de desenhos
televisivos e também por meio do cinema, em diversos filmes recentes da
última década, entre eles o filme em que o nosso ladrão de raios aparece.
Retomando
algumas lembranças dos mitos gregos, poderíamos afirmar que, as figuras
reunindo características animais e humanas, como o minotauro, ou aumentadas,
segundo a perspectiva de Hume, ou as musas como profetas da criação, poderiam
ser indicações de que um contorno filosófico tentasse se aproximar de uma mais
precisa abordagem das figuras da Teogonia, dissecando associações de ideias
abrigadas nas figuras do imaginário da mitologia grega, descrita na obra do
poeta Hesíodo. Compreendemos isto como um valioso caminho de averiguação das teses de David Hume a
respeito da imaginação.
Nossa
intenção, sobretudo, é se colocar no limite temporal que nos interpõe e nos afasta, desde
uma mediação entre nós e os mitos da antiguidade que antecederam o surgimento
da filosofia. Não pretendemos aqui realizar um trabalho de interpretação
filosófica da obra Teogonia como um todo, desde a perspectiva da poética do
mito, tema o qual se ocupam alguns filósofos atualmente. Mas de outra maneira e
em outra direção, tratar o tema da imaginação associado ao tema da mitologia,
desde uma perspectiva empirista e não desde uma metafísica do mito. Isto é, a partir da tendência e inclinação em se familiarizar mais com algumas noções de metafísica, desde a observação dos mitos.
Nesta
mesma direção, afirmamos que a metafísica empirista de Hume nos promove uma
referência em relação ao assunto, porém, sabemos, que se trata de um caminho, e
tão somente um caminho, dentre outros possíveis de leitura, em que uma
investigação mais rigorosa das figuras da Teogonia desde uma interpretação da
poética ali instaurada, não é a intenção deste trabalho. A parcela do
desconhecido, indizível, irracional e do psiquismo, simbologia e religiosidade,
se interpõe entre nós e a Teogonia de Hesíodo, nos é inacessível, de certeza
que é um livro de muito difícil leitura, e de uma riqueza poética
incomensurável.
A
título de referência mais precisa na Teogonia de Hesíodo, uma passagem nos
chama muito a atenção. Se trata do "Proêmio das Musas", que promovem
com seu canto o anúncio das divindades e dos elementos da natureza sob a égide
destes deuses e deusas. Figuras como Zeus, Hera, Argos, Apolo, Atena, Ártemis,
Posídon, Têmis, Afrodite, Dione, Aurora, grande Sol, Lua brilhante,
Jápeto, Terra, Oceano e Noite, ecoam nos cantos das musas que lançam
"belíssima voz". Figuras estas que são associadas a impressões de
objetos materiais: como calçada, sandálias, porta, flechas, coroa, traços do
corpo como olhos, qualidades como o "curvo pensar" de Jápeto, e
ideias, como a ideia de beleza, de agilidade, de soberania, áurea, sagrado,
imortalidade, luminosidade, entre outros. Vejamos como se articula a passagem
em que encontramos estas figuras citadas acima, a saber, "O Proêmio das
Musas":
“vão
em renques
noturnos
lançando belíssima voz,
hineando
Zeus porta-égide, a soberana Hera
de
Argos calçada de áureas sandálias,
Atena
de olhos glaucos virgem de Zeus porta-égide,
o
luminoso Apolo, Ártemis verte-flechas,
Posídon
que sustém e treme a terra,
Têmis
veneranda, Afrodite de olhos ágeis,
Hebe
de áurea coroa, a bela Dione,
Aurora,
o grande Sol, a Lua brilhante,
Leto,
Jápeto, de curvo pensar,
Terra,
o grande Oceano, a Noite negra
e o
sagrado ser dos outros imortais sempre vivos.”
O que
pretendemos indicar lendo esta passagem, a partir da teoria da imaginação de
David Hume, trata-se em compreender que encontramos na filosofia referências
interessantes em nos aproximar de uma possibilidade de leitura e compreensão
das figuras mitológicas da Teogonia de Hesíodo. Sendo a obra de Hesíodo a
principal referência para mais uma versão sobre mitologia grega sendo
dessa vez uma releitura cinematográfica a partir de um curioso filme que traz à
tona uma leitura da literatura juvenil de um americano chamado Rick Riordan. Comentário que gostaríamos de ilustrar a partir da referência ao filme em questão.
E em
outra direção, nos interessa observar, ao nosso modo, como o cinema através de
uma grande produção, que envolve nada mais que o diretor Chris Columbus
(que dirigiu os dois primeiros Harry Porter), ainda nos dias de hoje, sob o
domínio da técnica e da ciência no mundo moderno, consegue atrair temas da
antiguidade ocidental como tais como os mitos gregos, como tema para um empreendimento
bem sucedido da indústria cinematográfica como este. Chris Columbus retoma a
mitologia grega, a subvertendo e pegando carona em suas figuras, e por tabela
nos remonta a trechos da obra que mais chegou aos leitores de nossas gerações
atuais sobre a mitologia grega, que é célebre “Teogonia: a origem dos
deuses” do poeta Hesíodo. No princípio era o caos.
A Zeus deram o trovão
e forjaram o raio: e nos aparece no cinema nosso caro amigo Ladrão de raios: o
principal acusado é Percy Jackson
O
raio governa todas as coisas que são
Herácrito
Ora,
logo o relâmpago, o trovão de Zeus? Estaria a hierarquia do arquétipo de rei
dos reis do Universo, o grande Zeus em perigo? Tendo seu principal poder
ameaçado? Seu atributo da natureza que ele Zeus coordena? O que a trama do
filme anuncia logo ao início é a instabilidade do Olimpo. Poseidon, ligado ao
elemento da phisys que é o mar, e Zeus, ao governo do “Relâmpago”, em uma
dilema: localizar o raio que foi roubado: o raio de Zeus.
O
percurso desta trama e aventura, se passa na busca por este raio principal, já
dizia o filósofo Heáclito: “O raio governa todas as coisas que são”. O
interessante que a grande maioria dos personagens impõe sua forma peculiar, em
um cenário místico próprio da obra de Hesíodo, dando espetacular relevo aos
mitos gregos, como por exemplo, as cenas em que aparecem as figuras ou
imagens da Hidra, e do olhar mortal e petrificador da sensual Medusa.
Levando adiante as
Teses de Hume:
a Teogonia de
Hesíodo,
e sua releitura no
filme do diretor Chris Columbus
Ora,
retomemos o percurso: em uma primeira oportunidade nos deparamos com a
filosofia de David Hume, e uma tentativa de demonstrar através de análise de
exemplos, que o filme Percy Jackson e o Ladrão de raios, baseado no livro de
Rick Riordan, e a obra clássica Teogonia a origem dos deuses de Hesíodo,
principal referência para as figuras do imaginário da mitologia grega,
apresentam, contudo, um fio condutor entre eles. Isto nos daria abertura para
um diálogo entre metafísica, a partir do tema da imaginação, e as figuras
da imaginação apresentadas nos mitos e reelaboradas no filme o Ladrão de
Raios, de 2010.
Nossa inclinação é indicar que as afirmações de David Hume de que as figuras da imaginação associam de uma forma ou de outra elementos, características, da experiência sensível, é um de nossos principais pontos de partida para a abordagem aqui desenvolvida. Podendo, a atividade da imaginação, aumentar, associar, diminuir, caricaturar, como própria dinâmica do pensamento, os dados fornecidos pelos sentidos. Tomando sobretudo como referências os elementos ou fenômenos da natureza tornadas divindades na obra de Hesíodo, e que o filme em questão dá relevo e importância, por exemplo nas figuras de Poseidon, referente aos mares, e Zeus, referente ao raios.
É nesta direção que vale a pena articular algumas noções acerca do tema da imaginação na filosofia de David Hume, para a qual a principal constatação em relação ao conhecimento é exatamente a pergunta: “What impression that Idea is derived?” Isto é, de que impressão esta idea é derivada? Assim encontramos no Tratado da Natureza Human de Hume. É este o problema filosófico primordial que nos conduziu por todo este percusso de reflexão.
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