domingo, 15 de maio de 2011

MEMORANDO: Orquestra Manguefônica





Um acontecimento memorável, um instante de infinitude, isso mesmo, nada mais nada menos que a mais bem sucedida aliança do baque solto e do baque virado: Nação Zumbi e Mundo Livre S/A juntos no mesmo palco!! Como assim? Tal aliança atendia pela alcunha de Orquestra Manguefônica. Local: Circo Voador, noite de 2 de abril de 2005, sábado. Objetivo dos mangueboys: em homenagem ao eterno Chico Science, tocar o álbum Da Lama ao Caos praticamente na íntegra e fixarem sua marca indelével na memória de um público sedento por ouvir e ver a aliança mais poderosa surgida nos trópicos na história da música. A abertura ficou por conta de seus conterrâneos Mombojó, jovens rapazes que traziam algo como um flerte da bossa com o groove, contando com a participação, ao final da apresentação, de China do Sheik Tosado.

Enfim, passado o percurso da viagem até a cidade de Jorge Ben e Picassos Falsos, para não nos estendermos muito, embora transbordando ansiedade e voracidade através de ouvidos e olhos, estávamos lá, na espreita do que nenhum relato pode tornar conciso, Orquestra Manguefônica meus caros!!

Subitamente um repentista aparece no palco, é o prenúncio dos mangueboys, com a linguagem sendo dosada a golpes de martelo, é anunciada a entrada do groove, do funk, do protesto sujo de lama e vivo, muito vivo, depois de muitos ataques dos urubus e alvo de inúmeros “mísseis desgovernados”. Inicia-se a introdução de Monólogo ao pé do ouvido, Fred 04 de posse de seu cavaquinho assume os vocais, “Modernizar o passado é uma evolução musical, cadê as notas que estavam aqui, não preciso delas, basta deixar tudo soando bem aos ouvidos”, quando braços em punho cerrados se levantam para cantar em coro: “Viva Zapata, viva Sandino, viva Zumbi, Antônio Conselheiro, todos os panteras negras, Lampião sua imagem e semelhança, eu tenho certeza eles também cantaram um dia”.

É dado o sinal para que mangueboys tomem seus postos, duas baterias, percussão, três tambores, a pungente guitarra de Lúcio Maia.... Banditismo por uma questão de classe torna-se um cadenciado funk-groove, com o negão Gilmar Bola 8 nos vocais, para só então Jorge Du Peixe assumir Rios, Pontes & Overdrives. Subitamente, Lúcio Maia, do lado direito do palco para o público, solta um fulminante riff irreconhecível de guitarra, a Orquestra acompanha, o mais atencioso ouvinte estranha a levada, quando de repente Jorge Du Peixe entra com a letra de A cidade, como se não bastasse, o groove continua, com Fred 04 sem aviso prévio tomando um dos microfones a cantar trechos de Guns of Brixton do Clash. A cidade tornara-se groove session, Du Peixe retoma os vocais e vai de A message to you Rudy, “Rudy, a message to you, Rudy”, dos Specials (composição de Lee "Scratch" Perry/Lee Thompson), em seguida, evoca o Ben com Ponta de lança africano (umbabarauma). A esta altura já estava indicado que as versões de estúdio das canções de Da Lama ao Caos tinham passado por incríveis,  maturadas e constantes mutações.

A praieira tornou-se um flutuante e equilibrado ska. Em seguida, Marcos Matias do fundo do palco, imponente com seu tambor em punho, subitamente assume a regência quando o assunto é samba, Samba Makossa, a intensidade vai aumentando na medida em que Pupillo vai acelerando os galopes de sua bateria sob as rédeas do pandeiro de Toca Ogan, até que o groove da Orquestra dá os seus saltos, “Cerebral, é assim que tem que ser, maioral, é assim que é, mão na cabeça e um foguete no pé”, agarra o público um fragmento do samba-groove com as vozes em coro, enquanto chão de Circo Voador é trampolim para a “Ladeira do limiar do gosto pelo infinito, já querendo o depois”, em expressão de Du Peixe. Lúcio, ao final de Makossa, troca de guitarra, o “depois” atende pela alcunha de Da lama ao caos, em sua Tsunami version, é a Cavalaria Manguefônica deixando o seu rastro a golpes de martelo. “Mais uma música nova aê” dizia Du Peixe a cada passagem de uma música para outra.

O arsenal do Mundo Livre não poderia deixar de fazer sua intervenção, começando sua andada com Livre Iniciativa, que deixara sua versão samba-groove de estúdio ao encontro de sua Manguefônica version, em que só no refrão: “Samba esquema noise!!”, é o público que aguardava o estouro do groove, nocauteado pelo conluio entre samba e reggae, com o cavaquinho de Zeroquatro marcando o swing da levada. Em seguida, a Orquestra vai de Manguebit com 04 na regência, que no breque evoca London Calling do Clash, com Dengue no baixo chamando pra si a regência martelada da Manguefônica, para só então encerrar a canção com o retorno à enérgica Manguebit.

Na seqüência, o no início sorrateiro e em seguida fulminante Salustiano song, é responsável por poupar as vozes dos mangueboys, abrindo destaque para a harpa Manguefônica de Lúcio Maia, para só então Du Peixe retornar à regência com Antene-se: “Sou, sou, sou, sou, mangueboy! Recife cidade do mangue, onde a lama é a insurreição, onde estão os homens caranguejos,..., procure antenar boas vibrações”. Com antena manguebólica dissipando boas vibrações através das ondas eletroafrociberdélicas sobre o infinito, abre-se espaço para o canto do outro lado do mundo para a amada Risoflora, é o caranguejo de andada deixando o seu rastro solitário: “E em vez de cair em tuas mãos preferia os teus braços, e em meus braços te levarei como uma flor, pra minha maloca na beira do rio, meu amor!”.

Como uma cavalaria que vem ao longe e vai impondo seu ensurdecedor volume e medida ao passo que vai chegando, aparece o Lixo do Mangue, Pupillo e companhia soltam os braços, enquanto Gilmar Bola 8 vem como um lutador de boxe do fundo do palco largando o seu tambor para assumir com voracidade os vocais: “Vamo se embora que o mundo arrudiô, e se eu ficar aqui parado eu não vô, me diz que som é esse que vem de Pernambuco.”

Mais uma intervenção do Mundo Livre S/A na Orquestra Manguefônica: Pastilhas coloridas, “Como se não houvesse lugar pra nós na Nação Zumbi”, canta Zeroquatro. Em Coco Dub (Afrociberdelia), Black Alien é convidado ao palco, Toca Ogan entra em transe afastando-se dos instrumentos e ocupando o centro das atenções com seus malabarismos corporais, enquanto 04 evoca trechos de Guns of Brixton aos microfones e amplificadores bem ajustados, calibrados.

Embora Maracatu de tiro certeiro tenha ficado de fora dos sons, após passagem de Orquestra Manguefônica diante de olhos e ouvidos famintos, cair em si insistiu em se afastar de ouvidos, olhos ensolarados em noite tranqüila, espírito eletrizado no burburinho que ecoava da multidão, apenas instante de infinito deixando seu rastro por demais crivado em memória, é isso aê!! Longa vida aos caranguejos com cérebro!!!

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