quarta-feira, 17 de março de 2010

Metafísica: noções gerais




Metafísica é uma palavra de origem grega. É o resultado da reunião de duas expressões, a saber, "meta" e "physis". Meta significa “além de”, e physis podemos traduzir por “natureza” . Metafísica significa então: Investigações além da natureza.

Para definir melhor metafísica vamos diferenciá-la das chamadas Ciências da Natureza. As ciências da natureza, como o próprio nome indica, se ocupa em investigar, determinar e examinar as propriedades daquilo que existe e se encontra na natureza, seja na forma de objetos, seja na forma de fenômenos. Entendemos por Ciências da Natureza a Física, a Química, a Biologia, Geografia (física) como principais.

A metafísica, além de Investigações da natureza, se interessa por temas, sobretudo que podemos indicar como situados no plano das idéias. Assim, são temas de metafísica:

• O conhecimento
• O modo como conhecemos
• O que é um conceito
• Como os sentidos (visão e audição, por exemplo) atuam em nosso processo de conhecer as coisas
• Como se forma a nossa imaginação
• O que é uma sensação
• A importância da memória e aprendizado em nosso acúmulo de experiência
• O que é uma intuição
• O que é o entendimento
• Como os afetos ou as emoções (em filosofia chamamos a isso "Phatos") podem ou não interferir em nossa busca por um conhecimento seguro

De todo, uma metafísica aborda temas que apenas podemos nos referir como situados no plano do pensamento, não encontrando na natureza nenhum objeto correspondente, ou você conhece algum objeto material como o nome de memória ou imaginação? Investigar a natureza, seus elementos e propriedades é tarefa das Ciências da Natureza.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Da noção de “imaginação” em David Hume



“todo poder criador do espírito
não ultrapassa a faculdade de combinar,
de transpor, aumentar ou de diminuir
os materiais que nos foram fornecidos
pelos sentidos e pela experiência.”
“todos os materiais do pensamento
derivam de nossas sensações
externas ou internas;
mas a mistura e composição deles
dependem do espírito e da vontade.”
David Hume



A perspectiva fixada por Hume (1711-1776) em relação à categoria de imaginação, prossegue um percurso muito peculiar, que ocupa ainda em nossos dias muitos pesquisadores, filósofos, e interessados em metafísica. Na tradição do empirismo, Hume se situa como uma posição radical ao que se refere em lançar à experiência o fundamento de uma teoria do conhecimento.

O percurso de Hume consistirá sobretudo, em determinar noções acerca do processo de formação das idéias. Nesta direção, realiza uma análise da percepção sensorial humana no sentido de encontrar no acontecimento originário das sensações ou impressões a provocação das idéias. E neste contexto Hume precisa a noção de imaginação. O que pretendemos como objeto de nosso breve artigo.

Na visão de Hume, o que é então a imaginação? Como ela se “forma”? A associação de idéias e qualidades tomadas pela imaginação, seja acordado ou dormindo como no sonho, encontra ou não sua provocação desde a experiência das sensações ou impressões? É no contexto destes problemas que se inscreve a metafísica empirista de Hume. Entendendo o empírico como aquilo que está na ordem do acontecimento da experiência, que para Hume, na problemática da imaginação, significa o dado pelas sensações e impressões.

Sensações e impressões são as percepções mais fortes e vivas na medida que preservam o acontecimento originário das qualidades fornecidas pelos objetos do mundo material e sensível, como também, pelos afetos.

De um lado temos sensações e impressões da presença de objetos, como mesa, cadeira, tv, rádio, computador, etc. Por outro lado temos também sensações e impressões de afetos, isto é, de emoções. Através da presença, isto é, de impressões e sensações, de objetos e do acontecimento de emoções, temos idéias de objetos e emoções.

De todo, no pensamento estas idéias, para David Hume, ora são cópias de impressões e sensações, que correspondem fielmente aos objetos do mundo material e sensível e às emoções ou afetos, ora nossas idéias tomam o rumo da imaginação.

Todavia, nos fixemos no problema: em que medida ou limite, as idéias não são somente cópias de sensações ou produto da imaginação? Em outra direção, é a imaginação livre? Ou a imaginação está somente livre desde que originária de sensações e impressões da experiência (empírica)?

Para David Hume, a imaginação está situada no princípio da associação de idéias. Este princípio da associação de idéias está por sua vez vinculado a uma ligação por meio de qualidades de impressões e sensações que acontecem.

Nesta perspectiva, quando tenho a impressão de um sabor, esse sabor se refere a uma das qualidades do objeto, isto é, do alimento ou de uma bebida, que concentram ainda outras qualidades apreendidas pelos sentidos, como o tamanho, forma, estado (se sólido ou líquido...), cheiro e cor.

Quando temos a impressão de um relógio de pulso ou de parede por exemplo, as qualidades do objeto como o brilho, opacidade, tamanho, cor, forma, isto é, suas propriedades, para David Hume, são tomadas como constituintes da impressão de um dado relógio.

Em outra direção, quando a imaginação de um pintor como Salvador Dali, em quadro de 1931 de nome “A persistência da memória”, cria uma imagem de relógios gigantes como se estivessem derretidos em uma paisagem distante, um dos relógios pendurado em um galho seco de árvore, outro no ar, etc, a questão que Hume propõe, é demarcar o acontecimento da imaginação como produto de associação de idéias de impressões reais, como árvore, relógio, fogo, terra, etc, e que retemos suas qualidades em nossa memória, isto é, através da lembrança.

Na medida que quando lembramos de uma sensação, a vivacidade originária do acontecimento nunca pode ser retomada em sua inteireza e força, mas em menor grau. Daí Hume afirmar que qualquer sensação ou impressão é mais viva e forte que uma idéia, lembrança, ou associação de idéias e qualidades distintas de objetos distintos como no caso da imaginação. Ao passo que a idéia, a lembrança e a imaginação têm seu princípio na experiência das sensações e das impressões.

Nesta direção, poderíamos então afirmar, que a imaginação não é tão sem rédeas como pensávamos, mas sua órbita gira em torno das sensações e impressões fornecidas pela experiência. Já que para Hume as impressões e sensações provocam o surgimento das idéias, e nestas, a imaginação.


Referências:
· Hume, David. “Investigação Acerca do Entendimento Humano” [1748]. Tradução: Anoar Aiex. Edição ACRÓPOLIS. Versão para eBook. eBooksBrasil. Fonte Digital: br.egroups.com/group/acropolis/. ©2001, 2006.
· Oliveira Salles, Fernão. “David Hume: Associação de Idéias, ‘cimento do universo’.” Revista Mente & Cérebro & Filosofia. São Paulo. SP. Duetto Editorial. Edição n° 2.
· Dali, Salvador. “A persistência da memória”, 1931. Reprodução digital.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

A filosofia tem que servir para algo?


Não agüento ver você filosofando
no meu ouvido... me irrita.
Dizia realmente já se irritando,
a histeria ultrapassando os poros
os ouvidos até chegar à boca,
que interrompia abruptamente
qualquer coisa que tentasse falar sutilmente.
Abraão Carvalho

A tentativa (o movimento) de Abraão Costa Andrade[1] em seu breve artigo com o nome-problema “Para que serve a filosofia?”, consiste em problematizar sobre o sentido histórico de nosso hábito em atribuir dignidade hierárquica às coisas somente em função de sua utilidade prática imediata. Ora, mas qual o sentido de atribuirmos um valor mais elevado somente àquelas coisas às quais podemos utilizar na vida prática imediatamente? Dito de outro modo: as coisas só têm valor se puderem ser utilizadas imediatamente na vida prática?

Ora, indicar um valor, trata-se aqui de ordenar, por estes ou aqueles outros motivos, uma certa hierarquia. A que hierarquia estamos nos referindo? A uma hierarquia de valores. Ora, o que nos leva a tomar estas ou aquelas decisões? Decidir é separar, separar ordenando desde uma certa hierarquia. O que nos leva a indagar: porque então, à utilidade imediata das coisas na vida prática atribuímos um mais elevado valor? De todo, por lançarmos a uma posição inferior tudo aquilo que não remete a uma utilidade prática imediata, como o campo dos afetos ou dos valores éticos, ou até mesmo a filosofia, e lançando em uma posição superior todo o universo dos objetos materiais ou saberes práticos, dada a sua necessidade prática e concreta, como um copo, um martelo, um “curso técnico”, etc.

Nesta perspectiva, nos parece que quando nos voltamos para a filosofia, o que nos frustra, nos perturba e nos atormenta, é justo o espanto em não encontrarmos uma tal utilidade prática imediata à bendita ou maldita da filosofia!!! Nesta medida, a viciada pergunta: para que serve isto? Para que serve aquilo? Quando nos indagamos sobre a utilidade dos objetos e dos saberes técnicos, encontra sua incongruência[2] ou deslocamento quando nos perguntamos desesperadamente para que serve a filosofia!!!

Ora, quando dissemos que a filosofia serve para isto ou aquilo, este “isto” não dá conta de determinar o horizonte da filosofia, ou mais precisamente, do filosofar, ao passo que o “isto” próprio ao olhar filosófico desdobra-se em uma infinidade de determinações que se sobrepõem umas às outras, posto que no movimento de determinar o “isto” para o qual a filosofia “serve” imediatamente, já nos escapa aquele determinar unívoco ao qual estamos habituados quando nos referimos ao mundo dos objetos sensíveis e às finalidades dos diferentes modos de saber técnico.

Contudo, do mesmo modo que nos indagamos para que serve a filosofia, poderíamos, antes, nos perguntar se em nosso raio histórico, em nossa época, dita moderna, atribuímos valor e dignidade hierárquica às coisas que não têm utilidade prática imediata. Dito de um modo mais preciso, algo que não tem utilidade prática imediata tem algum valor?

Por mediação do embotar que é o hábito, aquilo que nos habituamos sem nos darmos conta por mó de quê aconteceu às nossas vidas, somos conduzidos, sorrateiramente ou materialmente, a nos seduzirmos pela idéia de que as coisas realmente só têm algum valor se tiverem realmente uma utilidade prática! Ora, quem seria o baratinado a dar algum valor, de quebra mais digno, a algo que não tem utilidade na vida prática imediata e cotidiana? Seria este um desvairado, uma aberração do resultado das mais populares das normas sociais e culturais vigentes? De todo, interessa-nos agora, demarcar outro problema correlato ao problema em identificar uma tal utilidade à filosofia, a saber, o que significa algo ter sua utilidade prática?

Retomemos o exemplo dos objetos do mundo sensível, aqueles que na ótica de Kant nos afetam por mediação dos sentidos, da sensibilidade, alto, baixo, maior, menor, quente, frio, ruído dissonante ou límpido, etc. Esta capacidade de determinação da consciência através dos sentidos, enquanto saber, segundo Kant, consiste sobretudo em um afetar que nos direciona desde uma reação à manifestação dos objetos, de modo que nos faça tomar esta ou aquela atitude, que é levada a cabo desde nossa habilidade em diferenciar, relacionar e separar as coisas, umas das outras. Aproximar ou se distanciar do quente ou do fogo de acordo com as circunstâncias, por exemplo. Ora, com isto queremos demarcar que existem objetos do mundo material e sensível que encontram no pensamento uma certa “correspondência” entre nome e coisa. Isto, a coisa, encontra-se com seu nome, certo objeto de forma retangular no qual se serve a comida, encontra-se com o seu nome, maturado no percurso da tradição, a saber, mesa.

Todavia, existem aquelas idéias e noções que não encontram um objeto no mundo material e sensível. Ora, a estas idéias, por não encontrarem repouso na realidade material percebida pelos sentidos, pela sensibilidade, podemos desde já, apenas por esta constatação, tratar como inúteis, sem utilidade prática? Já que seus princípios e definições não encontram lugar na transformação material e objetiva da realidade? Ora, mas de que distinção estamos tratando? Da distinção entre aquilo que tem utilidade prática imediata e o seu oposto, o que não tem utilidade prática corriqueira, e o nosso problema inicial, situar daquele ou daquele outro lado, a posição da filosofia. Afinal de contas, a filosofia tem ou não tem utilidade prática?

Para nos situarmos diante de tamanho problema, nos aproximemos de algumas de nossas noções em relação ao desdobramento para o pensar o vínculo e distinção entre pensamento e prática, ou em outros termos, pensamento e ação. Ora, estamos habituados a ligar de um modo fundado na tensão entre opostos quando nos referimos ao sentido de pensamento e ao sentido de ação. Pensar, de acordo com nosso hábito, é o oposto de agir. A ação preserva um campo totalmente distinto em relação ao pensamento, que por vezes tomamos como a negação do agir. Pensar não é agir!! Podemos desesperadamente afirmar afoitos por convulsões que alteram a realidade existente.

Todavia, se permanecemos nesta perspectiva, a saber, a de que pensar não é agir, quando nos referimos à filosofia, podemos afirmar desajustadamente que ela não sirva para nada!!!! Pois não encontra seu objeto correspondente na realidade como o encontra a determinação e ligação entre o nome mesa com o seu objeto sensível correspondente. A filosofia, na extensão dos objetos do mundo sensível ou material não encontra justo a sua correspondência, na medida em que não serve imediatamente para isto ou aquilo. No que se refere àquele modo de vida entregue ao suprir as demandas das necessidades materiais mais imediatas, a filosofia aparece como carente de utilidade prática, ao passo que no movimento dos negócios o fim último trata-se da utilidade prática das atividades de permuta e negociação.

Ora, mas se nos rebelarmos em relação à idéia de que pensar não é agir, procurando situar a interligação ou reciprocidade entre pensar e agir, indicando deste modo que o pensar, por orientar os rumos da ação, consiste justo em um modo de agir, chegamos à constatação de que pensar é também um agir. À indicação de que pensar é agir, deixamos de lado o desprezo em relação àquelas coisas que não têm utilidade prática imediata, pois na medida em que lançamos o pensamento ao campo da ação humana, o pensamento pode ganhar contornos de utilidade prática, ao passo que o pensamento demarca o seu percurso por mediação de problemas. O aparecimento de problemas lança o pensamento às suas convulsões, que se inscrevem na tentativa de dar soluções a estes problemas.

Ora, viver significa ser afetado por problemas, aquecimento global, AIDS, clonagem, desemprego, cultura de massa, necessidades imediatas da vida, violência, diante de tais problemas, o pensamento não pode pedir licença sorrateiramente e sair de fininho como quem diz: “isso não é comigo.” Sermos afetados por problemas no percurso da vida indica-nos a necessidade histórica de agir por mediação do pensar, que é agir.

Se percorrermos esta perspectiva, a de que pensar é agir, que tem sua dinâmica no sobrevir de problemas que nos afetam, filosofia ganha sua “utilidade”, ao passo que o movimento de ser afetado ou provocado por problemas que brotam do processo histórico da realidade, desertificação, trabalho, violência policial, nos remete ao decidir diante destes mesmos problemas, ao passo que decidir é separar desde uma hierarquia, separar que se abre desde um relacionar por mediação de uma distinção.

Um contorno mais preciso acerca da relação histórica entre pensar e agir indica-nos o filósofo Hegel: “O pensamento é um produto não menos que vida e atividade de se produzir a si próprio.” [3] Esta atividade de se produzir a si próprio em sua tensão com a realidade, dito em outros termos, problemas que nos afetam, aquecimento global, reconhecimento, alternativas energéticas, cultura, ciência, convenções políticas e morais, indica-nos do mesmo modo o seu oposto, a saber, a negação do existente, ao passo que produzir na ótica de Hegel remete-nos ao seu oposto, destruir. Que p.. é essa!!?? Esta atividade de se produzir a si próprio, segundo Hegel:

“... contém o momento essencial duma negação, já que produzir é também um destruir. A filosofia, ao produzir-se a si própria, toma o natural como o seu ponto de partida para o superar. (...) O espírito apenas ultrapassa a forma natural, passa da moralidade imediata e do impulso da vida ao refletir e ao conceber. Deste modo, fere e derruba esta forma real e substancial de existência, esta moralidade e esta fé, e inicia o período da destruição.”[4]

Nesta direção, a filosofia aparece como uma exigência histórica, como uma necessidade histórica, ao passo que realiza sua dinâmica desde aquela tensão entre o produzir a si próprio e os problemas que nos afetam, de modo que as formas de organização da cultura, da política, da natureza, da religião, da família, da província, não mais satisfazem. A filosofia aparece então quando determinados valores culturais encontram-se com sua crise, sua decadência, sua ruína, sua corda bamba, seu abismo. Segundo o filósofo Hegel, a filosofia aparece na história “em tempos infortunados[5] para o mundo e de decadência na vida política”, quando os antigos sistemas religiosos e formas de cultura, começam a ser minados “por um processo de dissolução e renovação.” [6]

De todo, é preciso demarcar que este produzir a si próprio a partir da tensão com o real, com os problemas que nos afetam, que é também destruir – “produzir é também destruir” -, indica-nos um pensar por si próprio até as suas últimas conseqüências, ao passo que segundo Hegel, “a ninguém é dado pensar por outrem”.[7] E é justo neste sentido que Abraão C. Andrade encontra uma mediação para a tensão entre o produzir a si próprio por mediação do real, dos problemas que nos afetam no percurso da história. A saber, segundo este outro filósofo, a filosofia aparece como um “desconfiômetro” [8], como um instrumento de ação, ao passo que pensar é agir, do mesmo modo que é produzir que é também destruir, exorcizar fantasmas, arcaísmos.

Deste modo, a filosofia aparece como aquele “desconfiômetro” ativado “para não engolirmos a primeira certeza que nos oferecem como sendo uma verdade indiscutível”.[9] Neste sentido, a filosofia serve, por exemplo, para desconfiarmos de que a importância ou dignidade hierárquica de algo está em sua utilidade prática imediata. Ora, feito este percurso meus caros, pensar por si próprio não tem utilidade prática? Se cochilo pegar... jacaré abraça!!

Notas:
[1] Poeta, ensaísta, atualmente é professor de Filosofia da UFRN.
[2] Incongruente – adj. m. e f. Que não é congruente, que não condiz, que não convém; incompatível, impróprio. (Dic – Michaelis – UOL – digital)
[3] b) O início na história da exigência filosófica (p. 416) - In: Introdução à história da filosofia, Capítulo B) Relação da filosofia com as outras partes do que se pode saber. F. Hegel. Tradução de Orlando Vitorino. Os pensadores. Círculo do Livro. Editora Nova Cultural. 1996.
[4] Hegel, Introdução à história da filosofia, p. 416.
[5] Infortunado: adj. Desventurado, infeliz, desgraçado. – Dicionário Michaelis – UOL (digital)
[6] Hegel, Introdução à história da filosofia, p. 417.
[7] Idem, p. 422.
[8] Abraão Costa Andrade. Para que serve a filosofia? – Revista Discutindo Filosofia – p. 12.
[9] Idem.

Referências:
· Costa Andrade, Abraão. Para que serve a filosofia? In: Revista Discutindo filosofia. Editora Escala Educacional. Edição 01. São Paulo/SP, 2005.
· Hegel, G. W. F. Introdução à história da filosofia. Tradução de Orlando Vitorino. Os pensadores. Círculo do livro. Editora Nova Cultural, 1996.
· Kant, I. Primeira parte da doutrina transcendental dos elementos – Estética transcendental. In: Crítica da Razão Pura. Tradução de Valério Rohden e Udo Moosburguer. Os pensadores. Editora Nova Cultural. São Paulo, 1996.

domingo, 2 de novembro de 2008

O sertão vai virar Dizzy! E Dizzy vai virar sertão! A profecia científica de Siba e a Fuloresta no Tim 2008

“Eu tô pisando em terra de reis
eu tô pisando”
Siba
“Things To Come”
Dizzy Gillespie




Essa foi a pala de Léo ao final da apresentação do Siba na sessão Vitória do Tim Festival 2008 (26/10). Bruto. Sampleando a frase e sem pedir licença ou cessão, a lançamos ao título justo por a partir daí querermos situar algo del acontecimiento. A Fuloresta meu irmão. Primeira apresentação na cidade. Boquiabertos, estáticos e imóveis assistíamos a chegada sorrateira da Orquestra sob a regência coadjuvante principal do Mestre Siba. Aos poucos a captura das freqüências das batidas iam provôocanto o corpo. “Remexendo remexendo remexendo, neguinha sarará remexe aí que eu quero ver”, Jorge Ben mili ano.

Da cabeçada que velozmente tem brotado no nordeste, tendo Pernambuco como referência pólo cibernética, e sobretudo o Manguebeat, Siba e Mestre Ambrósio eram os que mais fixavam os ouvidos na anônima cultura popular, explorando as potencialidades territoriais dos ecos da mata e das antenas eternas captadas pelos tambores, maracatus, frevos e toda a tropa dos baques soltos e virados. Neste movimento, Siba e companhia lançavam em sua extensão sônica referências sonoras bem distintas embora Ben ligadas, dos projetos da Nação Zumbi de Chico, Mundo Livre S/A, DJ Dolores ou mais recentes como Mombojó, Cidadão Instigado, 3namassa, Maquinado, Mamelo Soud System, Buguinha Dub e a Vitrola Adubada, Autonomo e por aí vai. Com isto, não estava em jogo uma nostalgia pela tradição que está se definhando.

Nesse projeto, a Fuloresta, a visada quântica e sonora da regência de Siba atropela tempo e espaço, ou qualquer regionalismo provinciano, com passadas bem certeiras, incorporando elementos globais sobretudo do jazz, ska, dub, funk, orquestrado com arranjos de frevo e uma metaleira nervosa. O primeiro impacto é de estranheza, principalmente para nós urbanóides ou viciadamente, no bom e no mal sentido, educados na base do rock n’ roll. “Já estou farto do rock n’ roll, outros sons, outras batidas, outras pulsações”, já cantava Edgard Scandurra no clássico e inovador “Psicoacústica” do Ira!

Boa parte da história da música passou ali naquele show da Orquestra da Fuloresta, que apesar de vir pela primeira vez em solo vitoriano, desde o início do último milênio vem disseminando euforia, lamento, humor ácido e espontâneo, tendo lançado em 2002 seu primeiro registro, “Fuloresta do samba”, e no ano passado o álbum “Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar”.

“Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar”, essa é a centelha verbal manifesta na abertura da canção “Um passeio no mundo livre”, Chico Science e Nação Zumbi, Afrociberdelia. Que já manifestava embrionariamente a conexão das batidas dos cocos e maracatus com arranjos de metais. Siba elevou isto até sua máxima potência. Tempestade conceitual de Força 5, como diria Lúcio Maia no projeto Maquinado.

Entre tempos e entretempos o manifesto de alegria de cada mestre da orquestra (só tem maestro nessa orquestra! Putz), ganhava seus galopes e cadências, arranjos fenomenais, a metaleira afiadíssima, diversão total com os sopros eternos, um Dizzy Gillespie do sertão encontrando exílio na Fuloresta de Siba, um trompete lançando raio lazer, uma tuba marcando a pisada, um sax na base, e um trombone não menos, além de um chocalho atômico e freneticamente orquestrado, uma zabumba jazzyficada com pólvora de guerra e o canto de longo alcance de Siba.

Que era aquilo!!!!!!!!!??! Desde a marcação martelada de um Lee Hooker em uma tábua de madeira, até ao frevo insano da zabumba e da metaleira, passando pela andada pausada do dub e do reggae, até aos frenéticos, insanos e tranqüilos arranjos dizzyficados e skalizados. Quem fora educado minimamente com um pouquinho de jazz e muito ska, eqüalizou freqüências sensíveis e sonoras além bar em relação aos ouvintes ávidos por rock n’ roll, que se empolgaram mili ano muito mais com a fanfarra circense e colorida do Gogol Bordello.

O acordo com a tecnologia de áudio vem através do trance acústico da zabumba e do tambor velozmente empunhado sob o apito de Siba. O opaco da percussão harmonizando-se com o raio lazer de las trompetas, sobre a britadeira de penas da tuba, novamente pincelados com a lingüística do sax, e aquele chocalho atômico na base. Na base. Bruto.

Radiando elementos maturados durante séculos e sobretudo nas últimas décadas, nada de regionalismo provinciano. Ecoando dissonâncias surdas e reelaboradas em outro nível de criação e concepção, desde o afrobeat de um Fela Kuti com seus arranjos de metais na base, até à indiferença em relação a negative vibration de um Skatalites. Os caras da Fuloresta meu amigo, podem ser bem ouvidos desde a América Central, Kingston Jamaica, baldiando em Pernambuco, Alto José do Pinho e tal, passando pela Nigéria de Fela Kuti ou Etiópia de um Mulatu, ponte aérea Cotton Club em New Orleans noite com Skatalites. Mili ano mili ano pra lá do pra lá.

Um ska de guerra, fúnebre (“Suinã” - 2002), harmonizando-se com a poesia poca pala, pero atômica de Siba, “Nem sou mais eu que penso o que eu tenho pensado”. Indo na direção contrária do rótulo de regionalismo acrescenta Siba em entrevista a Leonardo Licote ao Jornal Globo (19/11/07), a respeito do lançamento do segundo álbum “Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar”: “O uso que faço de instrumentos como tuba e sax-tenor, por exemplo, não existe na tradição do maracatu”.

Canções que de súbito afluem à memória, além da conversa e interação total com o público, por parte do cosmopolita Siba e a Fuloresta, ativistas políticos do humor e provocadores das adrenas festivas, destaque para “Fuloresta do samba”, a faixa, que já começa, depois de uma introdução de um dub frevolizado acidamente pela metaleira, na pala “Sonhei tinha voado, tava montado na força que me comanda”, refrão na regência da Orquestra. Total total, simplesmente total parte.

Além da profecia sem culpa de Siba quanto aos destinos do clube Santa Cruz, zoação que virou profecia de fato, “Meu Time” (2007), “caiu pra terceira divisão”, a Orquestra seqüenciou também a regência de “Alados”. Canção que Siba participa com rabeca, letra e voz no primeiro álbum do projeto Maquinado, Toca, Maia, Dengue e Dj PG, e a rapaziada, que flerta mais com dub e arranjos de guitarras sem firula e ecos reelaborados por máquinas. “Homem Binário” o nome da peça transcendental, 2007, Maquinado. Parafraseando o “Homem Bicentenário” de Isaac Asimov, ficção científica, uma das referências para Lúcio Maia e a galera da Nação Zumbi.

Finalize Tim Festival a Fuloresta desce do engomado palco do Teatro Universitário e improvisando um carnaval de teatro, dado o perímetro que não a rua, mandando repentismo skalizado que às vezes pede licença para o hardcore da percussão sob a regência de um chocalho atômico, Mané Roque é o nome da figura, pero real na base, na base sem firula, fervendo o arroz atrozmente sorridente.

Enquanto a Fuloresta batizava todo o perímetro do teatrão, saía já satisfeito do mezza. Tomar uma cerveja no saguão, gastar com os conhecidos ou não na multi. Daqui a pouco uma senhorita matrix da produção na sua função convoca elegantemente o público para a próxima atração: Gogol Bordello. Ouvir a gatinha né.

Pero, na primeira faixa... Gogol. Uma espécie de Kiss sem máscaras, hippies circenses, misturado com power-rangers. No perdón. De súbito voltar para o saguão, mais cervejas, só tinha tomado uma, tenso, lá dentro não podia tomar, que merda! Li na Gazeta da semana a Tatiana Wuo, comentando sobre repensar o lugar do Tim Festival em la poster(c)idade. Bem lembrado. Também por Siba, ironizando ao início da apresentação que tentou providenciar junto à produção um kit para cada um com uma chave de fendas para que pudéssemos desmontar as cadeiras do teatro!

À entrada do Gogol Bordello as fendas sonoras que a Fuloresta havia aberto já estavam de bom tamanho. Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar. Já passou. Salve Siba e a Fuloresta. Estranho alguém botar mais fé em um show sem guitarras, baixo, bateria e sintetizadores e que não é gringo de berço territorial. É nóis, mili ano, como diria Rodrigo Brandão, Mamelo Sound System!

Depois de Siba e a Fuloresta, pra quê Gogol Bordello? A galera se amarrou, contagiou o público, e neguim lá fora chapando, maturando o espanto agradável e montado na força que me comanda, já disse alguém. Mais um protótipo da estética Orquestra Manguefônica. Partículas sonoras proliferam ao universo. Valeu Siba!

domingo, 21 de setembro de 2008

Trabalho e manipulação do corpo e das vontades





















''we are the robots
functioning automatik
and we are dancing mekanik
we are the robots”
Kraftwerk


O trabalho, tal como predominantemente o conhecemos, consiste em uma forma privilegiada de mediação da relação do ser humano com a natureza, isto significa: se o ser humano altera e transforma a natureza para atender às suas mais diversas necessidades físicas ou espirituais, isto não se efetiva sem a mediação do trabalho. Deste modo, é através do trabalho que o ser humano transforma a natureza, bem como a si mesmo, isto quer dizer: ao realizar a sua intervenção na natureza para atender esta ou aquela necessidade, o ser humano está também se transformando, uma vez que após o ato de transformar a natureza o ser humano não permanece o mesmo.

O que pretendemos aqui trata-se de uma tentativa de compreender como o trabalho aparece no mundo contemporâneo, suas relações com o(a) trabalhador(a), bem como as relações deste(a) com o produto de seu trabalho, e por extensão, pensar as relações entre o(a) trabalhador(a) e o(a) não-trabalhador(a). Sobretudo, cabe ressaltar, que o objeto de nosso pensamento consiste naquele modo de trabalho que na sua realização produz alguma mercadoria, algum produto, que uma vez separado do trabalho ou do trabalhador que o produziu, é lançado ao mercado, de modo que um valor em dinheiro, ou mesmo um valor de troca, é nele (no produto do trabalho) fixado de acordo com as circunstâncias econômicas da sociedade.

Com o surgimento das grandes cidades no início do século XIX na Europa, não só a distribuição da população no espaço geográfico passa por radicais transformações, passando a concentrar nos centros e subúrbios urbanos a grande maioria da população, mas também, a organização do mundo do trabalho passa por alterações nunca vistas antes na história da humanidade. É neste período que começa a se extinguir a figura do artesão, aquele trabalhador que possui tanto os seus instrumentos de trabalho, como também, conhece todas as etapas da produção de sua mercadoria. A partir da Revolução Industrial [1] uma série de transformações técnicas irão exigir não só novas formas de trabalho, uma vez que o trabalho passa por uma certa divisão de funções, como também, a circulação de mercadorias passa a ser realizada em uma escala cada vez mais crescente. Nesta direção, é com o surgimento das indústrias que estas transformações no mundo do trabalho e no movimento de circulação de mercadorias e capitais se faz possível, vem-a-ser.

Ora, como é então o trabalho desde a sua organização voltada para a produção fabril? Ou antes mesmo, que preço tem o trabalho desde esta perspectiva? É o valor do trabalho suficiente para atender às necessidades físicas e espirituais do trabalhador? O trabalho, como nos afirma o dito popular, dignifica o homem? Quanto mais trabalha mais o trabalhador ganha?

De certo que, é através do trabalho que nos tornamos consumidores, adquirimos o direito de compra, deste ou daquele produto que nos interessa ou que é de nossa necessidade, nas limitações que o valor quantitativo do trabalho, o salário, nos impõe. Ora, ser consumidor, na atual forma de organização da vida e do trabalho, é ser humano, se não participamos do mundo das coisas através do ato de comprar, perdemos a nossa condição humana, nos aproximamos do animalesco, pensando bem, nos aproximamos de algo que nem sequer temos nome, uma vez que fora do conjunto dos consumidores não realizamos nossas necessidades mais vitais, mais imediatas, como alimentação, moradia e vestuário.

Enfim, nos encontremos com as questões a pouco lançadas, não pretendemos fugir delas. Na perspectiva de Karl Marx em seus Manuscritos econômico-filosóficos, escritos em 1844, a sociedade contemporânea se divide em basicamente duas classes sociais, a saber, uma consiste nos possuidores de propriedade, e a outra, em maior número, compõe-se de trabalhadores sem propriedade [2]. Ora, o que resta aos trabalhadores sem propriedade, sem instrumentos de trabalho? Resta-lhes sua energia física e espiritual, que permite a uma parte dos trabalhadores participar do mundo do trabalho. Deste modo, em troca de sua energia física e espiritual, uma vez participando de algum modo de trabalho, aos trabalhadores sem propriedade é pago um valor quantitativo, isto é, um salário. Ora, em que consiste este salário, que os trabalhadores sem propriedade recebem em troca do esgotamento de suas energias físicas?

Na perspectiva de Marx o salário é, nada mais, que um valor correspondente à permanência do trabalhador em seu trabalho, isto é, “[para que] a raça dos trabalhadores não se extinga.” [3] Isto significa: o valor do salário paga somente a ida do trabalhador ao seu local trabalho, bem como, paga aquilo que é necessário para que ele literalmente permaneça em pé. Ou seja, o que é consumido com o salário consiste apenas naquilo que permite ao trabalhador continuar vendendo a sua força física. Ora, se a mercadoria é aquilo que se atribui, em determinada situação, um valor de troca, um valor em dinheiro, é também o trabalhador uma mercadoria, na medida em que o salário é o valor desta mercadoria, que é sua energia física. Nesta direção afirma Marx: “A existência do trabalhador é, portanto, reduzida à condição de existência de qualquer outra mercadoria. O trabalhador tornou-se uma mercadoria e é uma sorte para ele conseguir chegar ao homem que se interessa por ele.” [4]

Uma vez que a máquina impôs a divisão técnica do trabalho, separando por funções as partes de determinado trabalho, e também pelo fato de o trabalhador ser ele mesmo uma mercadoria, podemos afirmar a partir daí que o trabalho trata-se da relação entre uma mercadoria e outra, que no ato produtivo gera outra mercadoria. Ora, que é isto? Se a energia física do trabalhador é ela mesma uma mercadoria, no trabalho, o ser humano não é tratado como tal, mas sim como uma mercadoria que possui um preço, o salário, daí que “o trabalhador, longe de poder comprar tudo, tem de vender-se a si próprio” [5]. Deste modo, a mercadoria que é o trabalhador, em sua relação imediata com outra mercadoria, a máquina, produz outra mercadoria, que consiste no resultado da relação entre duas mercadorias, que não os produtos do trabalho. O trabalhador, portanto, não só trabalha com máquinas, mas também, como uma máquina.

Em Tempos modernos, “Uma história sobre a indústria, a iniciativa privada e a humanidade em busca da felicidade” [6], o modo de vida que Chaplin interpreta em cena de nome E o tempo corre, de tão fora de si e tão perturbado pelo tempo veloz do trabalho, passa, de repente, a esquecer que está fora do trabalho, continuando repetidamente os gestos necessários exigidos na indústria, após o momento em que fora interrompido por outro trabalhador, pois aquele (Chaplin) tentou realizar o delírio de ser mais rápido que a máquina, e logo em seguida, permanecendo em seu delírio, realiza inesperadamente uma ação que nos abre a possibilidade de compreender melhor que não só os trabalhadores trabalham com máquinas, mas também, como máquinas. De repente, subitamente, Chaplin pega um recipiente com óleo e passa a jorrar este líquido usado habitualmente em máquinas e o lança no corpo dos outros trabalhadores, como se quem precisasse de óleo não fossem somente as máquinas, mas em primeiro lugar, os trabalhadores, que exercem suas funções com gestos tão mecanicamente repetitivos tais como o de uma máquina. Nesta direção, na ótica de Marx, ao trabalhador é pago “somente tanto quanto for necessário para ele existir, não como ser humano, mas como trabalhador, não para ele continuar reproduzindo a humanidade, mas sim a classe de escravos [que é a] dos trabalhadores.” [7] Assim, como a um determinado animal dá-se somente o necessário para a sua sobrevivência, também ao trabalhador dá-se o necessário para que ele continue não vivendo, mas sim, sobrevivendo [8].

Neste modo de trabalho, o capital [9], que na ótica de Marx é “trabalho armazenado” [10], consiste naquele poder que decide quais as exigências práticas do mundo do trabalho, isto significa: não são os trabalhadores sem propriedade que decidem que modalidades de trabalho desejam realizar, mas sim um outro poder que não o dos trabalhadores.

Isto é, ao capital é dado o privilégio de decidir que modalidades de trabalho devem existir no mundo. Nesta direção, para os possuidores de propriedade, de capital, aos trabalhadores não cabe a decisão de escolher este ou aquele modo de trabalho, uma vez que para o capital, os trabalhadores não têm nomes, são anônimos, pois são unidades de medida quantificáveis. Ora, o que mede o salário senão a abstrata relação entre as horas de trabalho e o movimento da produção?

Predominantemente, para o capital, os trabalhadores não têm interesses, desejos, afetos, estados de humor, capacidade de criação, mas, em primeiro lugar, têm energia física e espiritual que pode através de um valor, que é o salário, ser submetida e colocada ao serviço da produção de mercadorias que possam gerar o maior ganho possível com o mínimo de custos. É neste sentido que afirma o filósofo alemão: “O capital é, portanto, o poder de governo sobre o trabalho e os seus produtos. O capitalista possui esse poder, não por causa de suas qualidades pessoais ou humanas, mas na medida em que ele é proprietário do capital. O poder de comprar do seu capital, a que nada pode se opor, é o seu poder.” [11]

Ora, compreendido aí que para o capital o interesse primeiro é o de gerar o máximo de riquezas possível, isto de modo ilimitado e constante, não sem uma concentração destas riquezas nas mãos de poucos, poderíamos nos posicionar diante do seguinte problema que se abre para o pensamento: os interesses do capital estão de acordo com os interesses da sociedade em seu conjunto?

Ora, este modo de organização do mundo do trabalho que faz da realização do trabalho a negação da vida do trabalhador, trata-se, sobretudo, de um modo de organização em que os interesses do capital não somente não estão de acordo com os interesses da sociedade em sua totalidade, como também, estão na direção contrária aos interesses desta. Isto significa: os interesses do capital estão, salvo hipotéticas situações, necessariamente contra os interesses e perspectivas da comunidade humana como um todo.

Nesta direção, ao produzir riquezas através de seu trabalho, é o trabalhador lançado cada vez mais na miséria. Ora, em que sentido? A afirmação de que quanto mais o trabalhador trabalha mais ele ganha, perde todo o seu fundamento, isto é, perde todo o seu sentido, se pensarmos que no ato de produzir esta ou aquela mercadoria, o trabalhador engrandece um poder de um ser outro que não ele mesmo, engrandece um poder estranho que nem mesmo o trabalhador consegue definir precisamente qual a sua face. Neste sentido afirma Marx nos seus Manuscritos econômico-filosóficos, em capítulo de nome Trabalho estranhado e propriedade privada:

“O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral. Este fato nada mais exprime, senão: o objeto que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor.” [12]

Isto significa precisar que o produto do trabalho realizado pelo trabalhador, uma vez separado daquele que o produziu, se mostra como um poder, como o afirma Marx, “independente do produtor”, ou seja, o mundo das coisas, das mercadorias, que foram geradas a partir do emprego da energia física e espiritual do trabalhador, se separa dele, e justamente nesta separação entre resultado do trabalho e produtor, é que se ergue um poder que vai contra ele mesmo, ou em outros termos, o objeto produzido se volta contra o seu produtor, na medida em que retira (suga) deste o máximo de energia física e espiritual.

Neste sentido, este modo de trabalho mostra-se não como encontro da vida com a própria vida, mas em direção oposta, mostra-se como desencontro da vida com a própria vida. Isto significa dizer: através da realização deste modo de trabalho ocorre a desrealização do trabalhador, ou em outros termos, a negação ou mesmo ruína da vida deste.

Daí compreendermos que no trabalho o trabalhador se torna outro ser que não ele mesmo. É justo neste aspecto que ganha sentido a afirmação de Marx, a saber, de que no trabalho o trabalhador “não pertence ao seu ser, (...) ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, (...) não se sente bem, mas infeliz, (...) não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica... e arruína o seu espírito. O trabalhador só se sente, (...) em primeiro lugar, junto a si [quando] fora do trabalho e fora de si [quando] no trabalho.” [13]

O mais assombroso, assustador e demoníaco, é que a grande maioria da população no mundo foi reduzida, em um pouco menos de dois séculos, a este modo de trabalho que comete de modo radical, não só o assassinato da criação, a ruína do corpo humano, a exploração extremada da natureza, da qual se extrai o máximo sem nada retribuir, como também, manipula - dando outra direção- o livre desenvolvimento dos poderes da alma, ou em outros termos, das potencialidades humanas. Deste modo nos afirma Marx:

“...quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando, tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, [e] tanto menos o trabalhador pertence a si próprio. É do mesmo modo na religião. Quanto mais o homem põe em Deus, tanto menos ele retém em si mesmo.” [14]

A vida do trabalhador, portanto, é tomada ou mesmo roubada pelo trabalho, pois no percurso de sua vida não vive para si, mas somente para o trabalho. Isto significa: é no trabalho (não estamos nos referindo a qualquer modo de trabalho) que a morte ocupa o espaço da vida com uma intensidade maior. Isto, nos cabe ressaltar, em relação ao não-trabalhador, aquele indivíduo ou grupo que emprega de algum modo a energia física do trabalhador para a geração do máximo de riquezas materiais em um curto espaço de tempo. Riquezas que se separam do trabalhador, pois no resultado do trabalho não mais pertencem a quem as gerou, ou seja, não pertencem aos trabalhadores sem propriedade aos quais é pago em troca um medíocre valor quantitativo, ao passo que a medida da extensão do trabalho é a quantidade e não a qualidade.

Nesta direção, a alma dos trabalhadores só é útil no trabalho, que rouba toda a sua energia física e espiritual para a geração de riquezas materiais que ao trabalhador não pertencem. Para outras coisas além do trabalho mecânico e repetitivo, a alma dos trabalhadores torna-se inútil na mesma medida que atrofia sua criação, ao passo que não desenvolve livremente aquilo que está no horizonte de seus interesses e necessidades.

Nesta perspectiva, a feroz concorrência entre os trabalhadores não abre a possibilidade da realização de interesses que não os mais imediatos para a sobrevivência, como alimentação, moradia e vestimenta. Isto não de modo satisfatório, mas sobretudo de modo precário e medíocre. Uma canção dos meninos do Mundo Livre S/A, de Recife, de nome A bola do jogo, pode nos abrir indícios para uma melhor compreensão acerca da alma dos trabalhadores, assim ouvimos Fred Zero Quatro cantar tomado por certo estado de humor e cólera:

“Minhas pernas são bastante fortes
Como as de todo trabalhador
Meus braços são de aço
Como os de todo operário
Mas como já dizia um velho casta
‘A merda dos trabalhadores
É sua alma inútil’
E eu tenho uma alma que deseja e sonha
Mas como já dizia uma velho casta
‘A alma dos trabalhadores
É como um carro velho
Só dá trabalho’ ” [15]


Notas:
[1] “Por Revolução industrial convencionou-se designar o processo de transformações econômicas e sociais, caracterizadas pela aceleração do processo produtivo e pela consolidação da produção capitalista. Tal processo assinala, ainda, a passagem em definitivo da produção baseada em relações feudais para a produção em que o capital e o trabalho estão definitivamente separados, isto é, a produção capitalista. A introdução do sistema de fábricas e a crescente mecanização das forças produtivas iniciou-se na Inglaterra, em fins do século XVIII, espalhando-se posteriormente, ao longo dos séculos XIX e XX para outros países.” In: Capítulo 5. A Revolução industrial e a nova sociedade do trabalho, p. 187, História – volume I. Ricardo de Moura Faria, Adhemar Martins Marques, Flávio Costa Berutti. Editora Lê S/A, Belo Horizonte, Minas Gerais, 1989.
[2] Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, Trabalho estranhado e propriedade privada, p. 79.
[3] Idem, Caderno I, Salário, p. 24.
[4] Idem.
[5] Idem, p. 28.
[6] Tempos modernos, escrito, dirigido e produzido por Charles Chaplin com Paulette Goddard; Cena 1: Dirigido por Charles Chaplin.
[7] Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, Caderno I, Salário, p. 28.
[8] Aqui, sobretudo nos cabe realizar uma certa distinção, entre viver e sobreviver. Em uma canção do álbum Clube da esquina 2 ouvimos acerca de uma certa gente que “não vive, apenas agüenta” (Maria Maria – 1978, Emi-Odeon Brasil). Em canção de nome Propaganda, da Nação Zumbi, ouvimos na voz de Jorge Du Peixe: “É melhor viver do que sobreviver” (Gravado por Marcos Ferrari nos estúdios Trama entre maio e abril de 2002 em São Paulo/SP).
[9] Posses, quer em dinheiro quer em propriedades, possuídas ou empregadas, em uma empresa comercial ou industrial por um indivíduo, firma, corporação; Importância que se põe a render juros; Riqueza ou valores acumulados, destinados à produção de novos valores; (Dicionário Michaelis – UOL, digital)
[10] Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, I – Ganho do capital, 1. O capital, p. 40.
[11] Idem.
[12] Idem, Trabalho estranhado e propriedade privada, p. 80.
[13] Idem, p. 82 e 83.
[14] Idem, p. 81.
[15] A bola do Jogo, letra de Zero Quatro; canção do álbum Samba esquema noise, de 1994; Mundo Livre S/A.


Referências:
 - Moura Faria, Ricardo de, Marques, Adhemar Martins & Costa, Flávio. História – Volume I; Berutti; Editora Lê S/A, Belo Horizonte, Minas Gerais, 1989.

- Marx, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos; Tradução e notas: Jesus Ranieri; Boitempo Editorial; Perdizes, São Paulo. Primeira edição: maio de 2004.

- Chaplin, Charles & Goddard, Paullet (roteiro, direção e produção). Tempos modernos, Uma produção Charles Chaplin – United Artists. Estréia: 5 de Fevereiro no Cinema Rivoli, New York, 1936.

- S/A, Mundo Livre. Samba esquema noise. Produzido por Carlos Eduardo Miranda e Gravado no estúdio Nas Nuvens/ RJ. 1994.

- Nascimento, Milton. Clube da esquina 2. EMI/ Odeon Brasil. Direção de produção: Mariozinho Rocha. Produção executiva: Milton Nascimento. Técnicos de gravação: Roberto de Castro, Dacy Rodrigues e Toninho Silva. Mixagem: Nivaldo Duarte. 1978.

- Zumbi, Nação. Nação Zumbi, Produzido por Nação Zumbi. Gravado por Marcos Ferrari nos estúdios Trama. São Paulo/ SP, 2002.

sábado, 20 de setembro de 2008

Crítica e criação em bits




"Um murro na cabeça
é o que você ganha por perguntar
e um murro na cabeça é o que você ganha
por não perguntar"
Moryssey


"Quem tem bit tem tudo, yeah!"
mundo livre s/a
(carnaval na obra)


O cyber espaço em questão pretende apresentar artigos e ensaios desde um diálogo com a filosofia, e se tratando de nossas terras, fixarmos algumas das temáticas não tão somente a partir do diálogo com a tradição européia, ao passo que pretendemos tratar de temas que nos afetam de modo abrupto e coriqueiro, seja na esfera de nossa cultura política, de nosso trato com a natureza, nossas abismais hierarquias voláteis e rígidas, até aos diálogos com as manifestações artísticas contemporâneas, sobretudo no universo da música "pop", do cinema, ou literatura, de modo a encontrarmos através de algumas obras e referências, marcos oraculares para pensarmos polêmicas de nossa era, seja no campo da estética, da política, ciência ou cultura.