quarta-feira, 25 de março de 2009

Da noção de “imaginação” em David Hume



“todo poder criador do espírito
não ultrapassa a faculdade de combinar,
de transpor, aumentar ou de diminuir
os materiais que nos foram fornecidos
pelos sentidos e pela experiência.”
“todos os materiais do pensamento
derivam de nossas sensações
externas ou internas;
mas a mistura e composição deles
dependem do espírito e da vontade.”
David Hume



A perspectiva fixada por Hume (1711-1776) em relação à categoria de imaginação, prossegue um percurso muito peculiar, que ocupa ainda em nossos dias muitos pesquisadores, filósofos, e interessados em metafísica. Na tradição do empirismo, Hume se situa como uma posição radical ao que se refere em lançar à experiência o fundamento de uma teoria do conhecimento.

O percurso de Hume consistirá sobretudo, em determinar noções acerca do processo de formação das idéias. Nesta direção, realiza uma análise da percepção sensorial humana no sentido de encontrar no acontecimento originário das sensações ou impressões a provocação das idéias. E neste contexto Hume precisa a noção de imaginação. O que pretendemos como objeto de nosso breve artigo.

Na visão de Hume, o que é então a imaginação? Como ela se “forma”? A associação de idéias e qualidades tomadas pela imaginação, seja acordado ou dormindo como no sonho, encontra ou não sua provocação desde a experiência das sensações ou impressões? É no contexto destes problemas que se inscreve a metafísica empirista de Hume. Entendendo o empírico como aquilo que está na ordem do acontecimento da experiência, que para Hume, na problemática da imaginação, significa o dado pelas sensações e impressões.

Sensações e impressões são as percepções mais fortes e vivas na medida que preservam o acontecimento originário das qualidades fornecidas pelos objetos do mundo material e sensível, como também, pelos afetos.

De um lado temos sensações e impressões da presença de objetos, como mesa, cadeira, tv, rádio, computador, etc. Por outro lado temos também sensações e impressões de afetos, isto é, de emoções. Através da presença, isto é, de impressões e sensações, de objetos e do acontecimento de emoções, temos idéias de objetos e emoções.

De todo, no pensamento estas idéias, para David Hume, ora são cópias de impressões e sensações, que correspondem fielmente aos objetos do mundo material e sensível e às emoções ou afetos, ora nossas idéias tomam o rumo da imaginação.

Todavia, nos fixemos no problema: em que medida ou limite, as idéias não são somente cópias de sensações ou produto da imaginação? Em outra direção, é a imaginação livre? Ou a imaginação está somente livre desde que originária de sensações e impressões da experiência (empírica)?

Para David Hume, a imaginação está situada no princípio da associação de idéias. Este princípio da associação de idéias está por sua vez vinculado a uma ligação por meio de qualidades de impressões e sensações que acontecem.

Nesta perspectiva, quando tenho a impressão de um sabor, esse sabor se refere a uma das qualidades do objeto, isto é, do alimento ou de uma bebida, que concentram ainda outras qualidades apreendidas pelos sentidos, como o tamanho, forma, estado (se sólido ou líquido...), cheiro e cor.

Quando temos a impressão de um relógio de pulso ou de parede por exemplo, as qualidades do objeto como o brilho, opacidade, tamanho, cor, forma, isto é, suas propriedades, para David Hume, são tomadas como constituintes da impressão de um dado relógio.

Em outra direção, quando a imaginação de um pintor como Salvador Dali, em quadro de 1931 de nome “A persistência da memória”, cria uma imagem de relógios gigantes como se estivessem derretidos em uma paisagem distante, um dos relógios pendurado em um galho seco de árvore, outro no ar, etc, a questão que Hume propõe, é demarcar o acontecimento da imaginação como produto de associação de idéias de impressões reais, como árvore, relógio, fogo, terra, etc, e que retemos suas qualidades em nossa memória, isto é, através da lembrança.

Na medida que quando lembramos de uma sensação, a vivacidade originária do acontecimento nunca pode ser retomada em sua inteireza e força, mas em menor grau. Daí Hume afirmar que qualquer sensação ou impressão é mais viva e forte que uma idéia, lembrança, ou associação de idéias e qualidades distintas de objetos distintos como no caso da imaginação. Ao passo que a idéia, a lembrança e a imaginação têm seu princípio na experiência das sensações e das impressões.

Nesta direção, poderíamos então afirmar, que a imaginação não é tão sem rédeas como pensávamos, mas sua órbita gira em torno das sensações e impressões fornecidas pela experiência. Já que para Hume as impressões e sensações provocam o surgimento das idéias, e nestas, a imaginação.


Referências:
· Hume, David. “Investigação Acerca do Entendimento Humano” [1748]. Tradução: Anoar Aiex. Edição ACRÓPOLIS. Versão para eBook. eBooksBrasil. Fonte Digital: br.egroups.com/group/acropolis/. ©2001, 2006.
· Oliveira Salles, Fernão. “David Hume: Associação de Idéias, ‘cimento do universo’.” Revista Mente & Cérebro & Filosofia. São Paulo. SP. Duetto Editorial. Edição n° 2.
· Dali, Salvador. “A persistência da memória”, 1931. Reprodução digital.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

A filosofia tem que servir para algo?


Não agüento ver você filosofando
no meu ouvido... me irrita.
Dizia realmente já se irritando,
a histeria ultrapassando os poros
os ouvidos até chegar à boca,
que interrompia abruptamente
qualquer coisa que tentasse falar sutilmente.
Abraão Carvalho

A tentativa (o movimento) de Abraão Costa Andrade[1] em seu breve artigo com o nome-problema “Para que serve a filosofia?”, consiste em problematizar sobre o sentido histórico de nosso hábito em atribuir dignidade hierárquica às coisas somente em função de sua utilidade prática imediata. Ora, mas qual o sentido de atribuirmos um valor mais elevado somente àquelas coisas às quais podemos utilizar na vida prática imediatamente? Dito de outro modo: as coisas só têm valor se puderem ser utilizadas imediatamente na vida prática?

Ora, indicar um valor, trata-se aqui de ordenar, por estes ou aqueles outros motivos, uma certa hierarquia. A que hierarquia estamos nos referindo? A uma hierarquia de valores. Ora, o que nos leva a tomar estas ou aquelas decisões? Decidir é separar, separar ordenando desde uma certa hierarquia. O que nos leva a indagar: porque então, à utilidade imediata das coisas na vida prática atribuímos um mais elevado valor? De todo, por lançarmos a uma posição inferior tudo aquilo que não remete a uma utilidade prática imediata, como o campo dos afetos ou dos valores éticos, ou até mesmo a filosofia, e lançando em uma posição superior todo o universo dos objetos materiais ou saberes práticos, dada a sua necessidade prática e concreta, como um copo, um martelo, um “curso técnico”, etc.

Nesta perspectiva, nos parece que quando nos voltamos para a filosofia, o que nos frustra, nos perturba e nos atormenta, é justo o espanto em não encontrarmos uma tal utilidade prática imediata à bendita ou maldita da filosofia!!! Nesta medida, a viciada pergunta: para que serve isto? Para que serve aquilo? Quando nos indagamos sobre a utilidade dos objetos e dos saberes técnicos, encontra sua incongruência[2] ou deslocamento quando nos perguntamos desesperadamente para que serve a filosofia!!!

Ora, quando dissemos que a filosofia serve para isto ou aquilo, este “isto” não dá conta de determinar o horizonte da filosofia, ou mais precisamente, do filosofar, ao passo que o “isto” próprio ao olhar filosófico desdobra-se em uma infinidade de determinações que se sobrepõem umas às outras, posto que no movimento de determinar o “isto” para o qual a filosofia “serve” imediatamente, já nos escapa aquele determinar unívoco ao qual estamos habituados quando nos referimos ao mundo dos objetos sensíveis e às finalidades dos diferentes modos de saber técnico.

Contudo, do mesmo modo que nos indagamos para que serve a filosofia, poderíamos, antes, nos perguntar se em nosso raio histórico, em nossa época, dita moderna, atribuímos valor e dignidade hierárquica às coisas que não têm utilidade prática imediata. Dito de um modo mais preciso, algo que não tem utilidade prática imediata tem algum valor?

Por mediação do embotar que é o hábito, aquilo que nos habituamos sem nos darmos conta por mó de quê aconteceu às nossas vidas, somos conduzidos, sorrateiramente ou materialmente, a nos seduzirmos pela idéia de que as coisas realmente só têm algum valor se tiverem realmente uma utilidade prática! Ora, quem seria o baratinado a dar algum valor, de quebra mais digno, a algo que não tem utilidade na vida prática imediata e cotidiana? Seria este um desvairado, uma aberração do resultado das mais populares das normas sociais e culturais vigentes? De todo, interessa-nos agora, demarcar outro problema correlato ao problema em identificar uma tal utilidade à filosofia, a saber, o que significa algo ter sua utilidade prática?

Retomemos o exemplo dos objetos do mundo sensível, aqueles que na ótica de Kant nos afetam por mediação dos sentidos, da sensibilidade, alto, baixo, maior, menor, quente, frio, ruído dissonante ou límpido, etc. Esta capacidade de determinação da consciência através dos sentidos, enquanto saber, segundo Kant, consiste sobretudo em um afetar que nos direciona desde uma reação à manifestação dos objetos, de modo que nos faça tomar esta ou aquela atitude, que é levada a cabo desde nossa habilidade em diferenciar, relacionar e separar as coisas, umas das outras. Aproximar ou se distanciar do quente ou do fogo de acordo com as circunstâncias, por exemplo. Ora, com isto queremos demarcar que existem objetos do mundo material e sensível que encontram no pensamento uma certa “correspondência” entre nome e coisa. Isto, a coisa, encontra-se com seu nome, certo objeto de forma retangular no qual se serve a comida, encontra-se com o seu nome, maturado no percurso da tradição, a saber, mesa.

Todavia, existem aquelas idéias e noções que não encontram um objeto no mundo material e sensível. Ora, a estas idéias, por não encontrarem repouso na realidade material percebida pelos sentidos, pela sensibilidade, podemos desde já, apenas por esta constatação, tratar como inúteis, sem utilidade prática? Já que seus princípios e definições não encontram lugar na transformação material e objetiva da realidade? Ora, mas de que distinção estamos tratando? Da distinção entre aquilo que tem utilidade prática imediata e o seu oposto, o que não tem utilidade prática corriqueira, e o nosso problema inicial, situar daquele ou daquele outro lado, a posição da filosofia. Afinal de contas, a filosofia tem ou não tem utilidade prática?

Para nos situarmos diante de tamanho problema, nos aproximemos de algumas de nossas noções em relação ao desdobramento para o pensar o vínculo e distinção entre pensamento e prática, ou em outros termos, pensamento e ação. Ora, estamos habituados a ligar de um modo fundado na tensão entre opostos quando nos referimos ao sentido de pensamento e ao sentido de ação. Pensar, de acordo com nosso hábito, é o oposto de agir. A ação preserva um campo totalmente distinto em relação ao pensamento, que por vezes tomamos como a negação do agir. Pensar não é agir!! Podemos desesperadamente afirmar afoitos por convulsões que alteram a realidade existente.

Todavia, se permanecemos nesta perspectiva, a saber, a de que pensar não é agir, quando nos referimos à filosofia, podemos afirmar desajustadamente que ela não sirva para nada!!!! Pois não encontra seu objeto correspondente na realidade como o encontra a determinação e ligação entre o nome mesa com o seu objeto sensível correspondente. A filosofia, na extensão dos objetos do mundo sensível ou material não encontra justo a sua correspondência, na medida em que não serve imediatamente para isto ou aquilo. No que se refere àquele modo de vida entregue ao suprir as demandas das necessidades materiais mais imediatas, a filosofia aparece como carente de utilidade prática, ao passo que no movimento dos negócios o fim último trata-se da utilidade prática das atividades de permuta e negociação.

Ora, mas se nos rebelarmos em relação à idéia de que pensar não é agir, procurando situar a interligação ou reciprocidade entre pensar e agir, indicando deste modo que o pensar, por orientar os rumos da ação, consiste justo em um modo de agir, chegamos à constatação de que pensar é também um agir. À indicação de que pensar é agir, deixamos de lado o desprezo em relação àquelas coisas que não têm utilidade prática imediata, pois na medida em que lançamos o pensamento ao campo da ação humana, o pensamento pode ganhar contornos de utilidade prática, ao passo que o pensamento demarca o seu percurso por mediação de problemas. O aparecimento de problemas lança o pensamento às suas convulsões, que se inscrevem na tentativa de dar soluções a estes problemas.

Ora, viver significa ser afetado por problemas, aquecimento global, AIDS, clonagem, desemprego, cultura de massa, necessidades imediatas da vida, violência, diante de tais problemas, o pensamento não pode pedir licença sorrateiramente e sair de fininho como quem diz: “isso não é comigo.” Sermos afetados por problemas no percurso da vida indica-nos a necessidade histórica de agir por mediação do pensar, que é agir.

Se percorrermos esta perspectiva, a de que pensar é agir, que tem sua dinâmica no sobrevir de problemas que nos afetam, filosofia ganha sua “utilidade”, ao passo que o movimento de ser afetado ou provocado por problemas que brotam do processo histórico da realidade, desertificação, trabalho, violência policial, nos remete ao decidir diante destes mesmos problemas, ao passo que decidir é separar desde uma hierarquia, separar que se abre desde um relacionar por mediação de uma distinção.

Um contorno mais preciso acerca da relação histórica entre pensar e agir indica-nos o filósofo Hegel: “O pensamento é um produto não menos que vida e atividade de se produzir a si próprio.” [3] Esta atividade de se produzir a si próprio em sua tensão com a realidade, dito em outros termos, problemas que nos afetam, aquecimento global, reconhecimento, alternativas energéticas, cultura, ciência, convenções políticas e morais, indica-nos do mesmo modo o seu oposto, a saber, a negação do existente, ao passo que produzir na ótica de Hegel remete-nos ao seu oposto, destruir. Que p.. é essa!!?? Esta atividade de se produzir a si próprio, segundo Hegel:

“... contém o momento essencial duma negação, já que produzir é também um destruir. A filosofia, ao produzir-se a si própria, toma o natural como o seu ponto de partida para o superar. (...) O espírito apenas ultrapassa a forma natural, passa da moralidade imediata e do impulso da vida ao refletir e ao conceber. Deste modo, fere e derruba esta forma real e substancial de existência, esta moralidade e esta fé, e inicia o período da destruição.”[4]

Nesta direção, a filosofia aparece como uma exigência histórica, como uma necessidade histórica, ao passo que realiza sua dinâmica desde aquela tensão entre o produzir a si próprio e os problemas que nos afetam, de modo que as formas de organização da cultura, da política, da natureza, da religião, da família, da província, não mais satisfazem. A filosofia aparece então quando determinados valores culturais encontram-se com sua crise, sua decadência, sua ruína, sua corda bamba, seu abismo. Segundo o filósofo Hegel, a filosofia aparece na história “em tempos infortunados[5] para o mundo e de decadência na vida política”, quando os antigos sistemas religiosos e formas de cultura, começam a ser minados “por um processo de dissolução e renovação.” [6]

De todo, é preciso demarcar que este produzir a si próprio a partir da tensão com o real, com os problemas que nos afetam, que é também destruir – “produzir é também destruir” -, indica-nos um pensar por si próprio até as suas últimas conseqüências, ao passo que segundo Hegel, “a ninguém é dado pensar por outrem”.[7] E é justo neste sentido que Abraão C. Andrade encontra uma mediação para a tensão entre o produzir a si próprio por mediação do real, dos problemas que nos afetam no percurso da história. A saber, segundo este outro filósofo, a filosofia aparece como um “desconfiômetro” [8], como um instrumento de ação, ao passo que pensar é agir, do mesmo modo que é produzir que é também destruir, exorcizar fantasmas, arcaísmos.

Deste modo, a filosofia aparece como aquele “desconfiômetro” ativado “para não engolirmos a primeira certeza que nos oferecem como sendo uma verdade indiscutível”.[9] Neste sentido, a filosofia serve, por exemplo, para desconfiarmos de que a importância ou dignidade hierárquica de algo está em sua utilidade prática imediata. Ora, feito este percurso meus caros, pensar por si próprio não tem utilidade prática? Se cochilo pegar... jacaré abraça!!

Notas:
[1] Poeta, ensaísta, atualmente é professor de Filosofia da UFRN.
[2] Incongruente – adj. m. e f. Que não é congruente, que não condiz, que não convém; incompatível, impróprio. (Dic – Michaelis – UOL – digital)
[3] b) O início na história da exigência filosófica (p. 416) - In: Introdução à história da filosofia, Capítulo B) Relação da filosofia com as outras partes do que se pode saber. F. Hegel. Tradução de Orlando Vitorino. Os pensadores. Círculo do Livro. Editora Nova Cultural. 1996.
[4] Hegel, Introdução à história da filosofia, p. 416.
[5] Infortunado: adj. Desventurado, infeliz, desgraçado. – Dicionário Michaelis – UOL (digital)
[6] Hegel, Introdução à história da filosofia, p. 417.
[7] Idem, p. 422.
[8] Abraão Costa Andrade. Para que serve a filosofia? – Revista Discutindo Filosofia – p. 12.
[9] Idem.

Referências:
· Costa Andrade, Abraão. Para que serve a filosofia? In: Revista Discutindo filosofia. Editora Escala Educacional. Edição 01. São Paulo/SP, 2005.
· Hegel, G. W. F. Introdução à história da filosofia. Tradução de Orlando Vitorino. Os pensadores. Círculo do livro. Editora Nova Cultural, 1996.
· Kant, I. Primeira parte da doutrina transcendental dos elementos – Estética transcendental. In: Crítica da Razão Pura. Tradução de Valério Rohden e Udo Moosburguer. Os pensadores. Editora Nova Cultural. São Paulo, 1996.