“Música eletrônica
figura rítmica
até política
na era atômica”
Kraftwerk
Sem dissimular a distância abismal e social existente entre as transformações tecnológicas ocorridas desde o início do século passado até os dias atuais e o acesso restrito a estas transformações, fechado em certa medida em certas condições econômicas para grande parte da humanidade no raio deste último século, vale ressaltar o quanto tais transformações afetaram o modo de vida do habitante urbano e a obra de arte moderna ocidental.
Neste sentido, cabe aqui não deixarmos no esquecimento, que aquilo que nomeamos enquanto tecnologia, de certo, que através de suas transformações bruscas, ocorridas principalmente a partir do início do século XIX, imprimiram historicamente novas formas de percepção sensorial. Deste modo, foi através da intermediação da ciência e da técnica que se abriu para o homem a possibilidade da criação da técnica cinematográfica, que se edifica desde o princípio formal do corte de imagens e sons, e assim sendo, faz-se possível desde a reprodução técnica. A percepção sensorial cinematográfica, se aproxima sobretudo, da percepção fragmentária daqueles que transitam na cidade contemporânea, ora distraidamente, ora tomados e atravessados por um súbito interesse extraordinário.
Tendo a dimensão de que a arte cinematográfica caminhou rumo ao aperfeiçoamento da utilização das técnicas audiovisuais, foi também por mediação da tecnologia que se abriu para o homem ocidental, principalmente a partir do final do século XX, a possibilidade de alterações abruptas no âmbito das técnicas de áudio. Neste sentido, foi através da ciência e da técnica que se abriram novas perspectivas de criação artística na esfera da música pop de vanguarda, através da utilização de equipamentos de gravação digital.
Tais transformações nas técnicas de áudio, ocorridas nas últimas décadas, tornaram possíveis historicamente, por exemplo, os trabalhos do Kraftwerk (Alemanha) e do Depeche Mode (Londres) nas décadas de 70 e 80 do século passado, respectivamente, ou mesmo de um Lee Scratch Perry, produtor, compositor e engenheiro de som jamaicano, um dos responsáveis por um dos mais bem sucedidos partos prematuros da música pop: o dub.
Retomemos a freqüência: De todo, cabe também ressaltar que tais transformações tecnológicas provocaram, em certa medida, a difusão em escala crescente da obra de arte que se edifica desde a reprodução técnica, através do que convém chamar de indústria cultural, de modo que se tornou mais importante a apropriação das transformações tecnológicas na forma artística do que o conteúdo daquilo que é criado junto com a intermediação da ciência e da técnica - basta ouvir as FM’s(!!).
Neste sentido, aproximar-se da criação de uma obra de arte “moderna”, significou em certa extensão, apropriar-se das possibilidades que a ciência e a técnica abriram para o homem, sem que se tenha a dimensão de como o envio através da tecnologia poderia estar situado. Dito de outro modo, confunde-se criação com utilização dos recursos que a ciência moderna dispõe. Neste horizonte, a reprodução técnica aparece aí tanto na forma de criação, como na distribuição da obra de arte através da nossa inescrupulosa e dissimulada indústria fonográfica.
Nesta direção, abre-se para o homem a perspectiva ou interesse, de criação na esfera da música através da mediação dos valiosos resultados da ciência e da técnica, uma vez que certos modos de se criar no âmbito da música pop só foram possíveis desde que foram abertas possibilidades de criação a partir do sampler, do corte de gravações em estúdio, e de equipamentos de gravação digital, possíveis a partir da alta tecnologia de codificação de áudio. É o que lemos no texto que abre o álbum Rádio S. AMB. A, da Nação Zumbi, nomeado Fome e Tecnologia, de Hermano Viana: “A combinação do sampler com o computador e com o equipamento de gravação digital (cada vez mais baratos), facilitou a pirataria entre os estilos do pop e suas simbioses com tradições de todas as culturas” .
Este tema em torno das relações entre ciência e arte, e por extensão, entre homem e ciência, encontramos também em uma canção que aparece no álbum Da lama ao caos. Trata-se da canção Computadores fazem arte, embora seja o texto de Fred Zero Quatro, que a imortalizou no álbum Guentando a ôia. Vale lembrar a billy vociferada guitarria de Zero Quatro, do Mundo Livre S/A:
“Computadores fazem arte
artistas fazem dinheiro
computadores avançam
artistas pegam carona
cientistas criam o novo,
artistas levam a fama”
Neste sentido, podemos concluir que as transformações tecnológicas na esfera das técnicas de áudio, impulsionadoras de transformações na esfera da própria história da música pop, ou da indústria cultural, de certo modo abriram horizonte para certas possibilidades de criação que somente podemos conceber, projetar, desde que vieram à tona tais mudanças técnicas, isto é, desde que sobrevieram historicamente.
Assim nos aponta indica Hermano Viana, freezando que a abertura de tais transformações técnicas promoveram não só uma intensidade maior da circulação da diversidade cultural e das mais diversas tradições regionais e culturais, através do formato MP3 por exemplo, bem como promoveram mutações na própria maneira de lhe dar e de se apropriar das tradições culturais, lançando para esta tensão entre tradição e modernidade certos saltos criativos que se aproximam ao mesmo tempo em que se distanciam da tradição.
Tomemos como exemplo as simbioses da Nação Zumbi que articulam em um mesmo plano a música eletrônica de um Kraftwerk com o canto martelado de um Caju e Castanha, ou mesmo os viscerais galopes de tambores de maracatu com guitarras ao modo Hendrix.
A respeito desta posição diante das tradições culturais, que indicam certa filiação histórica, territorial, e que articulam pontos de ligação entre o passado e o presente ao mesmo tempo em que promovem certa abertura para o novo, nos é de grande importância, a guisa de conclusão, nos lançarmos ao problema levantado por nomes como o sergipano DJ Dolores, que experimenta interseções entre o coco, maracatu e batidas eletrônicas, e que a respeito da bandeira do regionalismo polemiza: “Isso pode ser moeda forte com a globalização, mas sem essa de ‘preservar a cultura popular’. Quem disse que ela quer isso?”
Neste sentido, a noção de ‘preservar a cultura popular’ não pode ser tomada como uma via de mão única, ao passo que a extensão e continuidade de traços da tradição no percurso da história, passa sobretudo pela noção de que tais tradições precisam ser revigoradas justo através de mutações e maturações, que todavia lançam o novo a experimentos que ao mesmo tempo se jogam autonomamente para o autêntico e original e isto sem perder de vista certo enraizamento cultural.
Referências:
Walter Benjamin. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução
Hermano Viana. Fome e tecnologia. In: encarte do álbum RÁDIO S.AMB.A – Serviço ambulante de afrociberdelia. Nação Zumbi. Y Brasil Music?
Cidadão do mundo – DJ Dolores gasta agulha no exterior, por Diego Muniz. Revista Bizz. Outubro de 2006. Editora Abril.